Carf autoriza punições mesmo antes de condenação
Segundo instância máxima do órgão, contribuintes podem perder direito a benefícios fiscais
A Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF), instância máxima do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), decidiu recentemente que, mesmo sem terem sido condenados por crime contra a ordem tributária, os contribuintes podem ser punidos com a perda do direito a isenções ou benefícios fiscais.
“Atropelando todo o contraditório, a ampla defesa e a presunção de inocência inexoráveis a um processo penal e às gravosas consequências dele decorrentes, o fisco poderia fazer um juízo de valor acerca de uma conduta praticada, capitulá-la como um possível crime e revogar o benefício ou incentivo fiscal concedido ao contribuinte”, afirma Paulo Coimbra, sócio do Coimbra e Chaves Advogados.
Para a decisão, o CSRF se baseou numa leitura própria do que estabelece o artigo 59 da Lei 9.069/95, que trata das punições a crimes contra a ordem tributária. “Partindo de uma interpretação literal, o Carf entendeu que ‘prática de atos que configurem crime’ seria diverso de ‘prática de crimes’ ou ‘condenação por prática de crimes’, de modo que poderiam ser alcançados pela perda dos incentivos e benefícios mesmo antes de haver uma condenação judicial transitada em julgado”, observa Tatiana Del Giudice Cappa Chiaradia, sócia do Candido Martins Advogados.
“Entendo que a decisão é inconstitucional e pode ser questionada na esfera judicial, pois não é possível a imposição de penalidade sem a efetiva confirmação de que se está diante de um crime contra a ordem tributária”, pondera Thiago Braichi, sócio do Freitas Ferraz Capuruço Braichi Riccio Advogados. “O artigo 59 da Lei 9.069/95 estabelece uma sanção (perda de benefícios fiscais) à prática de crimes contra a ordem tributária. A sanção não pode ser decorrente de um mero indício de crime, ou de presunção de que se está diante de uma conduta ilícita”, acrescenta.
O precedente pode ser aplicado a outros casos. Com isso, mesmo antes de decisão definitiva do Judiciário, contribuintes podem ser punidos sem terem sido condenados por crime contra a ordem tributária.
A seguir, Coimbra, Chiaradia e Braichi detalham aspectos da decisão e suas implicações para os contribuintes.
Recentemente, o Carf determinou que contribuintes podem ser punidos por crimes contra a ordem tributária mesmo antes de serem condenados. O que envolve essa decisão?
A Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF), órgão colegiado de última instância do Carf, contrariando sua jurisprudência anterior, decidiu, por cinco votos a três, que para a revogação de incentivos fiscais ou benefícios de isenção ou redução tributárias, previstos na legislação tributária, não é necessário o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. Seria necessário tão somente que o contribuinte, em tese, pratique um ato ou tome uma conduta que sejam interpretados pela autoridade fiscal como configuradores de um crime.
Trocando em miúdos, isso significa que, atropelando todo o contraditório, a ampla defesa e a presunção de inocência inexoráveis a um processo penal e às gravosas consequências dele decorrentes, o fisco poderia fazer um juízo de valor acerca de uma conduta praticada, capitulá-la como um possível crime e revogar o benefício ou incentivo fiscal concedido ao contribuinte. Isso tudo sem falar que o suposto “crime” poderá não ser posteriormente reconhecido, seja por superveniente extinção do crédito tributário, por meio de uma sentença penal absolutória proferida pelo Judiciário, pelo não oferecimento da denúncia pelo Ministério Público, ou quiçá mesmo pela autoridade policial solicitar o arquivamento do inquérito por entender não haver indícios materiais mínimos ou não capitulação dos fatos para a continuidade das investigações, havendo a concordância do parquet e do juízo nesse sentido.
A decisão envolve a interpretação do artigo 59 da Lei 9.069/95, que dispõe: “Art. 59. A prática de atos que configurem crimes contra a ordem tributária (Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990), bem assim a falta de emissão de notas fiscais, nos termos da Lei nº 8.846, de 21 de janeiro de 1994, acarretarão à pessoa jurídica infratora a perda, no ano-calendário correspondente, dos incentivos e benefícios de redução ou isenção previstos na legislação tributária”.
De acordo com a decisão do Carf, os contribuintes que tiverem praticado “atos que configurem crimes contra a ordem tributária”, mesmo antes de serem julgados por decisão transitada em julgado, poderão estar sujeitos à perda dos incentivos e benefícios fiscais.
Por maioria de votos, os conselheiros da 3ª Turma da Câmara Superior do Carf (CSRF) — instância superior do órgão —, entenderam, no julgamento de processo nº. 11516.006132/2008-17, que o artigo 59 da Lei 9.069/95 permite que a administração federal puna o contribuinte pela prática de atos que configurem crimes contra a ordem tributária, independentemente de sentença condenatória transitada em julgado.
No caso analisado, a empresa foi acusada de superfaturar a aquisição de produtos no mercado interno, ocasionando um aumento irregular dos valores do benefício decorrente do crédito presumido de IPI concedido a exportadores, para fins de ressarcimento de PIS e Cofins incidentes na cadeia produtiva.
Em sede de recurso especial, a empresa alegou a existência de precedente (Acórdão nº. 9303-007.940) entendendo que o crédito presumido de IPI na exportação não tinha a natureza de incentivo e benefício de redução ou isenção de tributos, o que impedia a aplicação do artigo 59 da Lei 9.069/95.
Em quais argumentos o Carf se baseou para determinar as punições pré-condenação?
O caso tratou da revogação do direito do contribuinte de aproveitamento de créditos presumidos de imposto sobre produtos industrializados (IPI) nas operações de exportação.
Em sua jurisprudência anterior, o próprio Carf entendia que esse aproveitamento não decorreria de um benefício fiscal, incentivo de redução ou isenção, mas de mero direito creditício próprio da técnica de não cumulatividade inerente ao imposto. Contrariando seu próprio entendimento, nessa recente decisão aduziu o órgão colegiado que, na prática, o crédito presumido de IPI na exportação configuraria um benefício fiscal. Isso porque, sendo escriturado como um crédito em face do fisco, reduziria o valor final a pagar de outros tributos, como PIS/Cofins, que seriam compensados com esse crédito de IPI. Ou até mesmo se equipararia a uma isenção, haja vista que os créditos poderiam se equivaler aos débitos tributários, podendo inclusive superar esse valor — tornando o contribuinte momentaneamente credor do fisco, com a possibilidade de ressarcimento do crédito acumulado ao final do trimestre-calendário.
A Lei 9.069/95 dispõe, em seu artigo 59, que “a prática de atos que configurem crimes (…) acarretarão à pessoa jurídica infratora a perda, no ano-calendário correspondente, dos incentivos e benefícios de redução ou isenção previstos na legislação tributária”. Ora, veja-se que o Carf, além de revisar sua jurisprudência, extrapolou a fórceps a categorização do aproveitamento dos créditos de IPI, entendendo-o — em nossa avaliação, equivocadamente — como um benefício fiscal.
Para além desse raciocínio deveras forçoso, entendeu a CSRF, enfocando na literalidade do dispositivo mencionado, que o legislador, ao dizer “prática de atos que configurem crimes”, não disse “prática de crimes”, ou “condenação por prática de crimes contra a ordem tributária”. Nesse sentido, bastaria o contribuinte praticar um ato ou tomar uma conduta que a autoridade fiscal entendesse como crime (fato típico, ilícito e culpável) para que revogasse o aludido “benefício fiscal”. Haja vista que o legislador, ao vedar a fruição de benefício fiscal a quem tenha praticado ato que configure crime contra a ordem tributária, não exigiu condenação penal e sequer condicionou essa revogação à abertura de processo criminal. Exigiu apenas que a conduta proibida se adeque ao disposto pela legislação penal. Tal entendimento extrapola, e muito, as competências atribuídas à fiscalização. Pela independência das instâncias punitivas (tributária e penal), poderia então o fisco, seguindo essa linha, considerar um ato como configurador de um crime (competência exclusiva do Poder Judiciário, condicionada à legitimidade postulatória exclusiva do Ministério Público) e, então, revogar o benefício.
Partindo de uma interpretação literal, o Carf entendeu que “prática de atos que configurem crime” seria diverso de “prática de crimes” ou “condenação por prática de crimes”, de modo que poderiam ser alcançados pela perda dos incentivos e benefícios mesmo antes de haver uma condenação judicial transitada em julgado.
Em síntese, a CSRF justificou o seu entendimento com base em dois fundamentos: o crédito presumido de IPI na exportação pode ser considerado benefício e incentivo fiscal, sendo aplicável, portanto, a sanção contida no art. 59 da Lei 9.069/1995; e o dispositivo legal não exige condenação em processo criminal.
Entendeu a CSRF que o crédito presumido de IPI na exportação, na realidade, “não é de IPI”, prestando-se ao ressarcimento de PIS/Cofins incidentes nas etapas da cadeia produtiva. De acordo com essa sistemática, a lógica do crédito presumido de IPI na exportação seria de benefício e incentivo fiscal, na medida em que “incrementa a exportação, por tornar as empresas mais competitivas (benefício) e leva a que mais empresas que têm o intuito de exportar aqui invistam (incentivo)”. Portanto, entendeu-se que é cabível a aplicação da sanção prevista no artigo 59 da Lei 9.069/95.
Adicionalmente, a CSRF concordou com o argumento da Fazenda Nacional no sentido de que o referido dispositivo legal prevê a sanção administrativa de revogação de benefícios ou incentivos para as “práticas de atos que configurem crimes contra a ordem tributária”. Portanto, independentemente de condenação criminal e até de abertura de processo criminal, decidiu-se que o contribuinte pode sofrer penalidades em âmbito administrativo quando forem verificadas práticas de atos que configurem crimes, ou seja com a simples identificação de tais condutas.
Existe, na sua opinião, algum aspecto abusivo nessa decisão?
Com a devida licença ao entendimento esposado pela maioria dos julgadores da CSRF no caso, entendemos que a decisão é não somente abusiva como também ilegal, inconstitucional e imoral.
Ilegal pois, erroneamente, categoriza um incentivo creditício, próprio da técnica da não cumulatividade do imposto, como um benefício fiscal, quando a lei não o faz. Além do que, vai em sentido diametralmente oposto à decisão anterior tomada pelo próprio CSRF em caso idêntico, julgado no ano de 2010, que entendeu que o benefício não configuraria nem um incentivo nem um benefício fiscal, e, mesmo que o fosse, seria necessário o desfecho do processo penal para a sua revogação. Nesse sentido, com essa decisão mais recente, a jurisprudência do tribunal não estaria se mantendo estável, íntegra e coerente, conforme disposição expressa prevista no artigo 926 do Código de Processo Civil, Lei 13.105/15.
Além disso, extrapola acintosamente os limites da competência administrativa conferida aos auditores fiscais. Reconhecer a prática de um crime, bem como a imputação de quaisquer consequências de sua prática, não prescinde de uma decisão judicial (princípio da reserva jurisdicional), que somente pode decorrer de iniciativa exclusiva do Ministério Público, na medida em que se tratam de crimes sujeitos à persecução por ação pública.
Inconstitucional, pois viola frontalmente direitos fundamentais dos contribuintes previstos na Constituição, como a presunção de inocência, o contraditório e a ampla defesa. A decisão do Carf é teratológica nesse sentido, se tratando de um caso clássico de “fraude à Constituição”: apoiando-se na literalidade pedestre de um dispositivo, ou interpretando-o isoladamente de todas as outras normas do ordenamento, o intérprete frauda a Constituição, violando a sua hierarquia e impedindo que os axiomas e princípios desta irradiem seus efeitos por sobre a ordem jurídica.
E imoral, pois a decisão viola a ordem jurídica em sua totalidade, ao quebrar a confiança dos contribuintes nas autoridades, prejudicar a segurança das relações jurídicas e ressuscitar um processo medieval de acusação. Além de que, se valendo de uma nova composição dos integrantes que compõem a CSRF, reverter uma jurisprudência para fazer valer o entendimento do fisco, perfazendo-se um “direito de ocasião”.
Na minha opinião, não se trata de um aspecto abusivo, mas sim de uma má interpretação do contexto legal. O termo “prática de atos que configurem crimes” não permite qualquer interpretação literal e não difere da expressão “prática de crimes”. Somente o Poder Judiciário, por meio de decisão transitada em julgado, pode dizer se alguém cometeu crime e pode ser considerado culpado (artigo 5º, inciso LVII, CF), não podendo o Carf, na esfera administrativa, aplicar as sanções do disposto no artigo 59 da Lei 9.069/95 antes do reconhecimento judicial da efetiva prática de crimes.
Entendo que a decisão é inconstitucional e pode ser questionada na esfera judicial, pois não é possível a imposição de penalidade sem a efetiva confirmação de que se está diante de um crime contra a ordem tributária.
O artigo 59 da Lei 9.069/95 estabelece uma sanção (perda de benefícios fiscais) à prática de crimes contra a ordem tributária. A sanção não pode ser decorrente de um mero indício de crime ou de presunção de que se está diante de uma conduta ilícita. A presença do dolo deve ser apurada pelo juízo competente. O dispositivo deve respeitar os ditames constitucionais contidos nos incisos LIII e LVII do art. 5º da Constituição Federal, que preveem o seguinte: “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente” e “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.
Assim, a decisão representa uma verdadeira afronta ao princípio constitucional da presunção de inocência.
Qual o potencial prejuízo da decisão para os contribuintes?
Essa decisão representa um perigoso precedente. Contribuintes de boa-fé que se vejam diante de autuações fiscais — algo, diga-se de passagem, não tão raro quanto se possa imaginar, haja vista a complexidade e a pluralidade de interpretações possíveis da legislação tributária, divergentes da esposada pelo fisco — poderão ver seus benefícios e incentivos fiscais, ou até mesmo incentivos creditícios, serem revogados pelo fisco, por, de forma preconcebida ou preconceituosa, considerar o ato como criminoso.
A par disso, uma posição tão arbitrária e presunçosa das autoridades fiscais, caso levada a cabo, culminaria por recrudescer ainda mais a beligerância superlativa que já macula, lamente-se, as relações entre contribuintes e administração fazendária.
Espera-se que o Judiciário reverta essa decisão.
Como sempre, um precedente desse poderá ser aplicado em outros casos, permitindo que antes do pronunciamento definitivo do Poder Judiciário muitos contribuintes percam seus incentivos e benefícios fiscais sem que se tenha efetivamente constatada a ocorrência de crime contra a ordem tributária. Posto isso, esses contribuintes sofrerão a penalidade dessa perda dos seus incentivos e benefícios fiscais, essenciais para o exercício de suas atividades, podendo, após alguns anos, comprovar sua inocência e a ausência de crime, já tendo sofrido os prejuízos que não poderão ser mais reparados.
A relativização de direitos constitucionais como o da presunção da inocência é prejudicial para o sistema tributário como um todo e enfraquece a relação de confiança entre fisco e contribuinte. A administração pública não pode punir os contribuintes, inviabilizando suas atividades econômicas sem respeitar o devido processo legal e as demais garantias constitucionais. O ato administrativo de lançamento não tem função equivalente à do juiz, que tem a prerrogativa de processar e julgar na esfera criminal.
Este tipo de decisão da CSRF pode justificar lançamentos e aplicações de penalidades por autoridades fiscais, sem que sejam respeitadas as garantias constitucionais dos contribuintes.