Câmara Superior do Carf reduz multa de contribuinte

Com entendimento de que não houve dolo ou fraude, penalidade cai de 150% para 75%

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Em decisão recente, a Câmara Superior do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) decidiu cancelar uma multa qualificada que havia sido aplicada por causa do uso indevido do ágio na compra de uma empresa. Com a anulação, a penalidade foi reduzida de 150% para 75% sobre o montante não recolhido. O caso envolvia o Grupo Holcim, que adquiriu a Cimento Portland por meio de uma empresa veículo. 

Essas empresas costumam ser usadas unicamente com a finalidade de adquirir outra companhia — e, por não terem propósito negocial, a Fazenda Nacional entende que elas não podem amortizar o ágio pago pelo comprador numa operação de aquisição. O julgamento do caso pelo Carf, portanto, não se debruçou sobre o uso do ágio, que já havia sido considerado indevido, mas apenas sobre a multa que incidiria sobre a empresa — se qualificada ou de ofício. 

Associado do Freitas Ferraz Capuruço Braichi Riccio Advogados, Sávio Hubaide explica a legislação prevê que, nos casos de lançamentos de ofício realizados pelos agentes administrativos, será aplicada a multa de ofício de 75% sobre o montante não recolhido, não declarado ou declarado de forma incorreta. A multa qualificada de 150% deve ser aplicada somente em hipóteses excepcionais, que exigem a comprovação cabal da prática de fraude ou sonegação dolosa. No julgamento envolvendo o Grupo Holcim, a Câmara Superior entendeu que o contribuinte não cometeu nenhuma dessas infrações — daí a decisão de substituir a multa qualificada pela de ofício.

Breno Kingma, sócio do Vieira Rezende Advogados, observa que nos últimos anos os fiscais vinham considerando como fraude a adoção, pelos contribuintes, de planejamento tributário não admitido, mesmo que não houvesse dolo ou crime. Isso gerou uma quantidade crescente de multas qualificadas e de processos de representação fiscal para fins penais. Segundo Kingma, essa situação visava fazer com que as empresas evitassem o planejamento tributário por medo de serem penalizadas. 

Na entrevista abaixo, Hubaide e Kingma explicam em quais situações as multas de ofício e qualificada são aplicadas e tecem considerações sobre o entendimento do Carf a respeito do ágio em operações societárias.  


Em quais situações são aplicadas as multas qualificadas e de ofício?

Sávio Hubaide: As multas tributárias são aplicadas pelos auditores fiscais quando efetuam os lançamentos que originam os autos de infração, conforme previsto no Código Tributário Nacional (CTN). Ocorre que, diante das impugnações dos contribuintes que instauram os processos administrativos, muitas vezes as multas são questionadas, cabendo ao Carf julgar o lançamento fiscal para manter ou não as penalidades aplicadas.

A legislação ordinária prevê que, nos casos de lançamentos de ofício realizados pelos agentes administrativos, será aplicada a multa de ofício de 75% sobre o montante não recolhido, não declarado ou declarado de forma incorreta. A multa qualificada de 150%, por sua vez, como o próprio nome indica, é (ou deveria ser) aplicada em hipóteses excepcionais, que exigem a comprovação cabal da prática de fraude ou sonegação dolosa pelo contribuinte, conceitos definidos pela Lei 4.502/64.

A qualificação da multa poderá ser mantida pelo Carf, portanto, sempre que comprovada a prática dolosa de atos para impedir ou retardar a ocorrência do fato gerador, o seu conhecimento pelas autoridades fazendárias, ou para modificar suas características essenciais. Nos diversos temas relativos a planejamentos tributários, são condutas que podem ensejar a qualificação da multa, entre outras, a falsificação de documentos, a omissão de receitas, a não declaração dos atos e negócios praticados, mas jamais a mera divergência de interpretação jurídica entre fisco e contribuinte, ainda mais quando todas as operações estão devidamente declaradas.

E foi exatamente esse o fundamento principal da decisão do caso de ágio em tela. Na oportunidade, a Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF) entendeu que o contribuinte não omitiu nenhuma informação da Receita Federal, declarou todas as operações, sendo que a divergência residia na interpretação jurídica acerca da possibilidade ou não de amortização do ágio oriundo de operação com empresa veículo.

Breno Kingma: Toda vez que é lavrado auto de infração para se exigir do contribuinte determinado tributo, é lavrada uma multa de ofício de 75%. Quando o fiscal entende que no caso está presente uma sonegação, fraude ou conluio, ele majora a multa para 150%. É que se chama de multa qualificada. Em algumas hipóteses específicas previstas na lei, o percentual pode ser majorado ainda mais.

A questão central é que nos últimos anos os fiscais começaram, equivocadamente, a entender que um planejamento tributário não admitido por eles era uma fraude do contribuinte, ainda que não houvesse dolo ou crime.

A quantidade de multas qualificadas, a inclusão de diversos corresponsáveis nos autos de infração e a instauração de representação fiscais para fins penais aumentou de forma exponencial ano após ano, a nosso ver como uma forma de coagir o contribuinte a pagar os autos, além de impor medo às empresas, visando que elas evitem planejamentos tributários. 


São comuns os casos de conversão de multa qualificada em multa de ofício?

Sávio Hubaide: Sobretudo após a Operação Zelotes, deflagrada em 2015, as análises dos julgados administrativos comprovavam que a multa qualificada havia deixado de ser aplicada somente em hipóteses excepcionais, para se tornar a regra.

No entanto, felizmente esse cenário tem sido modificado. Diversas são as razões que podem influenciar a guinada favorável ao afastamento da multa qualificada, tais como: a alteração na composição das câmaras julgadoras, o fim do voto de qualidade em favor do fisco, as recentes decisões judiciais que têm validado planejamentos elisivos, e até mesmo a insistência doutrinária em reforçar a necessidade de comprovação do dolo e a aplicação do artigo 112 do CTN, segundo o qual se interpreta favoravelmente aos contribuintes casos de dúvidas sobre a capitulação legal, natureza, circunstâncias materiais, autoria ou punibilidade, situações comuns nos casos de planejamentos tributários.

Breno Kingma: No julgamento da impugnação ou recurso administrativos ou mesmo em âmbito judicial, caso os julgadores entendam que o tributo é devido, mas não houve fraude ou sonegação dolosos, eles podem manter a cobrança do tributo e afastar a multa qualificada, reduzindo-a para 75%. 


Quando ocorre o cancelamento da multa qualificada, há outros benefícios para a empresa autuada, além da redução dos valores as pagar?

 Sávio Hubaide: A fraude ou a sonegação que ensejam a aplicação da multa qualificada se assemelham às condutas descritas nos tipos penais que configuram crimes contra a ordem tributária (artigos 1º e 2º da Lei 8.137/90), como a omissão de informações, prestação de declarações falsas ou inexatas, falsificação de documentos, entre outros.

Por configurarem, em tese, ilícitos penais, o auditor que lavrar o auto de infração com a aplicação da multa qualificada possui o dever de formalizar a representação fiscal para fins penais, que será encaminhada ao Ministério Público para investigação somente se mantida a multa após o encerramento do processo administrativo (artigo 83 da Lei 9.430/96 c/c art. 2º, I, do Decreto 2.730/98). 

Portanto, o cancelamento da multa qualificada, além da redução dos valores a pagar, possui como benefício a não remessa da representação fiscal para fins penais ao Ministério Público, favorecendo a empresa, seus sócios e administradores.

Breno Kingma: Acreditamos que, se há entendimento que não houve fraude, eventuais corresponsáveis incluídos na cobrança devem imediatamente ser excluídos da cobrança. Além disso, as representações fiscais para fins penais necessariamente devem ser arquivadas.


O caso em questão, que envolveu uso considerado indevido do ágio, pode sinalizar alguma mudança de entendimento por parte da Câmara Superior do Carf nas questões relacionadas ao ágio de operações societárias?

Sávio Hubaide: A princípio, a decisão recentemente proferida não sinaliza mudança de entendimento sobre questões relacionadas ao ágio de operações societárias, pois não examinou o mérito da autuação. No caso, a Câmara Superior julgou tão somente a manutenção ou não da multa qualificada, tornando-se um relevante precedente para a delimitação desses critérios. 

Na decisão, o conselheiro relator Fernando Brasil de Oliveira Pinto fez importantes considerações sobre possíveis critérios de observação para a aplicação da multa qualificada, tais como: a prática de atos antes da ocorrência do fato gerador, a devida contabilização em documentos formalmente corretos e a declaração à Receita Federal. Além disso, o conselheiro destacou que, à época das operações, a jurisprudência administrativa era vacilante a respeito da amortização do ágio interno, circunstância que ao menos induziria o contribuinte a praticar tais atos, sendo que a dúvida atrairia a aplicação do artigo 112 do CTN para afastar a penalidade qualificada.

Vale destacar, também, a declaração de voto do conselheiro Caio César Nader Quintella, no sentido de que, ainda que se entenda que a prática de ato sem propósito negocial seja um ilícito (entendimento que não encontra amparo legal), isso não seria suficiente, por si só, para atrair a qualificação, que não prescinde da presença de má-fé e do artifício ardiloso, intencionalmente praticados pelo contribuinte.

Breno Kingma: Uma lógica binária poderia nos levar a uma conclusão no sentido de que se o planejamento não foi fraudulento, ele necessariamente foi válido e nenhum tributo é devido no caso. Isso não é verdade se examinarmos a jurisprudência do Carf. Um planejamento tributário pode não ser aceito, mas se pode entender que não houve dolo no caso, afastando-se a multa qualificada. Com isso, haveria uma autonomia entre a cobrança do tributo e a manutenção ou não da multa qualificada. Apesar disso, no caso do ágio em operações societárias, é mais difícil dizer que uma operação prevista expressamente na legislação pode, ao mesmo tempo, ser um ilícito tributário para a cobrança dos tributos e uma operação legítima que afasta a cobrança da multa qualificada. No nosso entender, isso pode sim ter alguma influência na Câmara Superior, embora a jurisprudência do Carf permita essa aparente ambiguidade.

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