Aumento do trabalho remoto gera desafio tributário

As controvérsias envolvendo a cobrança de ISS referente a serviços prestados em regime de home office

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Dentre os vários desafios gerados pelo aumento do trabalho a distância (home office), um é de natureza tributária: para qual município deve ser recolhido o Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISS)? Para o município onde o funcionário mora e trabalha ou para o município onde se localiza a empresa que o contrata? Essas questões, que já haviam ganhado relevância devido à tendência de digitalização, tornaram-se ainda mais prementes com a pandemia de Covid-19, que colocou um contingente ainda maior de pessoas no regime de trabalho remoto — e muitas delas moram em cidades diferentes das empresas para as quais prestam serviços. 

A regra geral é que o ISS é devido ao município em que o estabelecimento prestador do serviço está localizado. Na ausência desse estabelecimento, o que conta é o local do domicílio do prestador, explica Paloma Amorim da Cruz Rosa, advogada associada do Vieira Rezende Advogados. Para identificar o estabelecimento, são usados dois critérios: a configuração de uma unidade econômica ou profissional, onde é verificada a concentração do núcleo do serviço a ser prestado, e o local físico em que é realizado o serviço, de forma permanente ou temporária.

Com base nesses dois critérios, Rosa considera que, por enquanto, ainda não há argumentos de base legal para que o ISS seja cobrado pelo município onde o colaborador reside, mas pondera que a análise deve ser feita caso a caso. A questão se torna mais complexa, porque já há municípios que tentam atribuir responsabilidade solidária pelo recolhimento de ISS, por exemplo, a serviços prestados em espaços de coworking (Leis 13.701/03 e 16.898/18 do município de São Paulo). 

“Nos parece que, em um futuro próximo, talvez seja possível inserir o serviço prestado em regime de home office no âmbito do conceito de estabelecimento prestador/unidade econômica definido pelo artigo 4º da Lei Complementar 116/03, desde que haja o aprimoramento, em paralelo, da legislação aplicável ao novo contexto”, avalia a advogada. 

Na entrevista abaixo, Rosa aborda o funcionamento do ISS e as controvérsias envolvendo a cobrança do tributo em tempos de trabalho remoto.


Com a pandemia, ficou consolidado o sistema de trabalho remoto, o que levanta algumas questões tributárias importantes. Nesse sentido, como fica a cobrança de ISS, já que os colaboradores muitas vezes trabalham de várias localidades diferentes?

Paloma Amorim da Cruz Rosa: Não é de hoje que a evolução e a diversificação das formas e dos meios utilizados no desempenho da prestação de serviços, considerando uma economia cada vez mais digitalizada, vem desafiando a aplicação do conceito de estabelecimento prestador para fins da quantificação e recolhimento do Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISS).

Com a disseminação da Covid-19, pode-se dizer que restou comprovada, para alguns tipos de serviços, a larga aceitabilidade e funcionalidade do regime de trabalho remoto (home office), seja em âmbito integral ou parcial, tornando viável, portanto, o atendimento ao cliente e ao serviço contratado, muitas vezes, de forma pulverizada e à distância. 

A competência para a instituição do ISS, pelos municípios, está prevista no artigo 156, III, da Constituição Federal, e a fixação e delimitação dos elementos que devem compor a sua regra matriz de incidência tributária estão elencados na Lei Complementar 116/03, como os critérios quantitativos, materiais, temporais e espaciais a serem aplicados à cada situação em concreto.

Ocorre que a definição de alguns dos critérios espaciais aplicáveis não se adequam mais, de forma clara e objetiva, à realidade da prestação de serviço realizada sob o regime de home office. Isso porque, como regra geral, o ISS é devido ao município em que o estabelecimento prestador estiver localizado ou, na falta do estabelecimento, o local do domicílio do prestador.

Nesse sentido, a legislação se utiliza de dois critérios para nortear a identificação do estabelecimento prestador: a configuração de uma unidade econômica ou profissional, onde seja verificada a concentração do núcleo do serviço a ser prestado, e o local físico em que seja realizado o serviço, de forma permanente ou temporária.

Dessa forma, considerando a higidez dos critérios acima elencados, me parece que hoje ainda não há base legal adequada e suficiente que permita a cobrança, pelos municípios, do ISS conforme a residência de cada colaborador em home office contratado por determinada empresa sediada em seu território, nem, tampouco, o delineamento legal necessário do procedimento a ser desenvolvido pela fiscalização para realizar a apuração e cobrança do imposto sob os novos critérios espaciais, materiais e quantitativos que poderão estar envolvidos nesse novo contexto. De qualquer forma, destacamos que essa análise deve ser feita caso a caso, de maneira a avaliar as especificidades de cada situação.

Não obstante, com a evolução, a ampliação e o aprimoramento dos locais reservados ao home office, bem como considerando a evolução normativa de alguns municípios ؅— que já tentam atribuir responsabilidade solidária pelo recolhimento de ISS, por exemplo, a serviços prestados em espaços de coworking (Lei 13.701/03 e Lei 16.898/18) — nos parece que, em um futuro próximo, talvez seja possível inserir o serviço prestado em regime de home office no âmbito do conceito de estabelecimento prestador/unidade econômica definido pelo artigo 4º da Lei Complementar 116/03, desde que haja o aprimoramento, em paralelo, da legislação aplicável ao novo contexto.


As empresas devem prestar atenção para quais aspectos quando o assunto é o ISS relativo ao home office?

 Paloma Amorim da Cruz Rosa: Entendo que as empresas devem sempre estar atentas — principalmente aquelas que não contam com um local físico destinado ao desempenho dos serviços que representam o objeto social da empresa —, à preservação da concentração das características de unidade econômica ou profissional (administrativas, técnicas, gerenciais e operacionais), de forma a evitar que as autoridades fiscais municipais tentem atrair a competência tributária municipal para o local em que determinado colaborador desempenhe a sua atividade em regime de home office.


Na sua avaliação, do ponto de vista tributário, seria necessário algum tipo de alteração legislativa para acomodação dessa nova realidade? 

Paloma Amorim da Cruz Rosa: Sem dúvidas. A ausência de sincronismo entre a evolução legislativa e o desenvolvimento social, cultural e econômico da sociedade gera clara insegurança jurídica às relações tributárias e o exponencial aumento dos litígios fiscais instaurados em âmbito administrativo e judicial, o que acaba por gerar gastos públicos desnecessários, além de inibir a atração de investimentos e o desenvolvimento econômico do País.

  Como o trabalho prestado sob regime de home office, integral ou parcial, já é uma realidade em grande parte das empresas sediadas no País, e a digitalização da economia já assume papel relevante nas relações comerciais, por que não atualizar o critério espacial utilizado para fins de imposição do ISS sobre a prestação de serviços, definindo de forma clara quais novos elementos devem ser considerados para fins de apuração e recolhimento do imposto sob essa nova realidade que cada vez mais se distancia do físico e do tangível?


Empresas que eventualmente tiverem problemas com a cobrança de ISS referente ao home office podem recorrer de autuações recebidas? Como?

Paloma Amorim da Cruz Rosa: Apesar de ser recomendável a realização de uma análise caso a caso, entendo que as empresas que tenham sido autuadas para realizar o recolhimento de ISS utilizando como base os critérios espaciais, materiais e quantitativos aplicados sob o regime de home office utilizado por determinado colaborador  provavelmente terão robustos argumentos para defender a ausência de base legal que possa consubstanciar a referida cobrança.

  Nesse caso, a recomendação geral seria a apresentação de defesa/impugnação ao auto de infração lavrado para demonstrar que, com base na legislação vigente, ainda não há amparo legal suficiente a permitir a pulverização do critério espacial do ISS para fins de apuração e recolhimento do ISS, bem como para abranger o local do home office de determinado colaborador como parte da unidade econômica ou profissional da empresa.

1 comentário
  1. paulo mello Diz

    Prezada Dra. Paloma,
    prazer em reve-la.
    obrigado por compartilhar essa nova perspectiva do ISS.
    Indago como se enquadra nesse novo cenario de apetite da Fazenda o inciso II do artigo 2o. da LC116/03 que exclui do campo de incidencia do ISS a prestacao de servicos mediante relacao de emprego.
    Abs.

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