Assembleias de acionistas por meio digital: o impacto da Instrução 622 e os riscos envolvidos
A pandemia do novo coronavírus motivou a edição da Medida Provisória 931/20, que já foi aprovada no Congresso Nacional e aguarda a sanção presidencial. Dentre as estipulações, destaco aquelas pertinentes à análise deste artigo: a prorrogação do prazo para a realização das assembleias gerais ordinárias (AGOs), para até 30 de junho de 2020, e a conferência de competência à Comissão de Valores Mobiliários (CVM) para regular exceção à regra do artigo 124, §2º, da Lei das S.As. e autorizar a realização de assembleia digital.
Nesse sentido, a CVM recentemente editou a Instrução 622, que alterou a Instrução 481, de modo a regular e viabilizar a realização de assembleias por meio parcial ou exclusivamente digital.
Antes de partirmos para a análise do impacto da regulamentação da CVM e dos riscos envolvidos na realização das assembleias digitais, vale destacar alguns aspectos relativos à nova regulamentação.
Prazo para demonstrações financeiras
Inicialmente, a MP 931/20 foi editada um dia antes do término do prazo para apresentação das demonstrações financeiras pelas companhias e a Instrução 622 foi editada em 17 de abril de 2020, aproximadamente duas semanas antes do prazo-limite para a realização das AGOs. Consequentemente, no caso da MP 931/20, foi pouco eficaz o dispositivo que autorizava a prorrogação do prazo para divulgação das demonstrações financeiras; no caso do momento de edição da Instrução 622, para as companhias que não gozaram da prorrogação para a realização do certame, o curto espaço de tempo pode ter reduzido a quantidade de companhias que aderiram às AGOs digitais, conforme veremos a seguir.
Ainda a respeito da regulamentação, cumpre ressaltar que a CVM não determinou sistemas tecnológicos específicos que deveriam ser adotados nas assembleias digitais. Ao contrário, apenas requereu que a companhia diligenciasse para que o sistema eletrônico assegurasse o registro de presença dos acionistas e dos respectivos votos, a possibilidade de manifestação e de acesso simultâneo a documentos apresentados durante a assembleia que não tenham sido disponibilizados anteriormente, a gravação integral da assembleia e a possibilidade de comunicação entre acionistas.
Com base nesse cenário, podemos partir para a análise a respeito da adoção das assembleias digitais pelas companhias. Em artigo publicado pela CAPITAL ABERTO, o diretor da CVM Gustavo Gonzalez apresentou um detalhado e profundo levantamento das companhias com registro perante a CVM e integrantes do Ibovespa que realizaram suas AGOs de forma presencial, híbrida ou exclusivamente digital. O levantamento completo é bastante rico, mas a informação que me pareceu mais relevante foi a de que, dentre as companhias abertas integrantes do Ibovespa que fizeram suas AGOs após a edição da Instrução 622 (um total de 59 empresas), 49% foram parcial ou integralmente por meio digital (sendo 42% integralmente digital).
Já podemos considerar esse um número bastante expressivo de companhias que aderiram às assembleias digitais. Mas, se formos além e considerarmos apenas as companhias que realizaram suas AGOs com o benefício da prorrogação de prazo da MP 931/20 (ou seja, após 30 de abril de 2020), o número é ainda mais impactante: verifica-se que, de um total de assembleias de 28 companhias, 82% foram realizadas de forma parcial ou integralmente digital (sendo 22 companhias ou 79% desse total integralmente digital).
Com esses resultados, podemos concluir que tanto a edição da regulamentação da CVM a respeito das assembleias digitais quanto a prorrogação do prazo para a realização das AGOs prevista na MP 931/20 foram ferramentas importantes para possibilitar uma maior adesão pelas companhias às assembleias digitais.
Riscos das assembleias digitais
Com relação aos riscos envolvidos, a primeira preocupação que me ocorreu quando da edição da MP 931/20 e da Instrução CVM 622 foi com relação a acionistas que não tenham acesso à internet ou que tenham problemas de conexão para participar do certame. Será que esses acionistas poderiam requerer a anulação da assembleia se tivessem dificuldade de participar do conclame?
Fazendo o paralelo com o mundo “real” em assembleias exclusivamente presenciais, no caso de acionistas que enfrentem problemas para se fazerem presentes no dia, hora e local previstos na convocação (por exemplo, acidente de trânsito, cancelamento de voo ou outros imprevistos), não poderá ser imputada à companhia responsabilidade por esses imprevistos pessoais. Nessas hipóteses, os acionistas não teriam direito de anular o certame. Da mesma forma, o acionista que enfrentar problemas de conexão ou outros imprevistos — que não sejam causados pela plataforma ou meio disponibilizado pela companhia — também não terá uma demanda plausível contra a companhia. Então, esse risco, a princípio estaria afastado.
Discute-se, ainda, a respeito das formas de manifestação, conversas entre grupos de acionistas e exposição do voto. Até o momento, não se tem notícia de nenhum acionista que tenha apresentado reclamação formal à CVM ou ajuizado ação judicial ou arbitral reclamando de cerceamento do direito de manifestação ou voto durante quaisquer das AGOs feitas de forma híbrida ou digital.
Direito de manifestação do acionista
De qualquer modo, existe um consenso de que a companhia poderia, para garantir o direito de manifestação igualmente a todos os acionistas sem inviabilizar a assembleia, estabelecer regras e limitar o tempo de manifestação por acionista. Ocorre que, nesse caso, algum acionista poderia alegar que o tempo não foi suficiente ou que a regra cerceou seu direito.
Nesse sentido, um grupo de acionistas enviou no último dia 6 de julho uma carta à Securities and Exchange Commission, órgão regulador dos Estados Unidos (SEC), argumentando que a rápida implementação do modelo virtual teria gerado confusão e muitas dificuldades técnicas — que, segundo eles, chegaram a inibir a participação dos acionistas nas reuniões. Esses investidores alegam na carta à SEC: “Vimos várias situações nesta temporada [de assembleias] em que os acionistas não puderam fazer perguntas ao vivo, submeteram questionamentos que não foram compartilhados com outros participantes e, algumas vezes, observamos declarações falsas da empresa de que nenhuma outra pergunta havia sido feita”.
Pode ser que acionistas formalizem reclamações similares diretamente às companhias e à CVM e, caso algum tipo de cerceamento seja verificado, é possível que a companhia venha a ter que responder administrativa ou judicialmente, podendo ser requerida em algumas situações a anulação das deliberações de tal assembleia.
Outras questões que causaram receio quando do início dessa nova modalidade digital, como habilitação dos acionistas, verificação de documentação, assinatura e registro da ata e tecnologia a ser utilizada, aparentemente foram facilmente superadas com orientações detalhadas enviadas pelas companhias aos acionistas que se habilitaram a participar e mediante a utilização, pelas companhias, das plataformas comuns que estavam sendo intensamente utilizadas para reuniões e apresentações desde o início da pandemia.
Uma outra grande vantagem das assembleias digitais, sem dúvida, é a diminuição de custo para os acionistas, que não precisam mais se deslocar pelo País para participar desses certames.
Diante desse cenário, resta aguardar como será o comportamento daqui para frente. Se, passada a temporada de AGOs e com o relaxamento das medidas face à pandemia de covid-19, as assembleias digitais continuarão a exercer protagonismo no direito societário — ou não. Minha torcida particular é que sim, devemos avançar para um mundo mais simples, eficiente e digital.