As incertezas sobre a trava do IVA dual
Proposta para limitar a alíquota do imposto em 26,5% poderá gerar contencioso, além de não ser efetivada na prática
A aprovação do primeiro Projeto de Lei Complementar (PLP 68/24) que regulamenta a Reforma Tributária trouxe um objetivo polêmico, cuja intenção é considerada positiva, porém de efeitos incertos: um limite máximo para que a alíquota média do Imposto sobre Valor Agregado (IVA) dual fique em 26,5% e um mecanismo para que o imposto volte para esse percentual, caso seja extrapolado. No entanto, a avaliação das especialistas do Freitas Ferraz Advogados e do Vieira Rezende Advogados é que esse mecanismo poderá gerar questionamento e contencioso, além de não garantir que as alíquotas serão reduzidas se ultrapassarem a trava.
O PLP 68/24 foi aprovado pela Câmara dos Deputados em 11 de julho e ainda será avaliado no Senado Federal. O texto aprovado prevê uma trava de 26,5% para a soma das alíquotas de referência da Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) e do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) – o objetivo é evitar que o IVA dual represente um aumento da carga tributária, o que foi considerado positivo.
No entanto, com as exceções previstas e os bens e serviços que farão parte dos regimes diferenciados, a alíquota de referência do IVA dual já está em cerca de 27,3%, ou seja, já ultrapassou a trava de 26,5% proposta. “Como o texto ainda será analisado pelo Senado, é possível que essa projeção seja revista”, acreditam Júlia Swerts e Anna Laura Lacerda, associadas do Freitas Ferraz Advogados.
Como vai funcionar a trava do IVA dual em 26,5%
Paloma Rosa e Priscila Alves, sócia e associada do Vieira Rezende Advogados, explicam como vai funcionar a trava do IVA dual prevista pelo PLP 68/24: o Poder Executivo da União e o Comitê Gestor do IBS deverão realizar avaliação quinquenal de eficiência, eficácia e efetividade dos regimes diferenciados, dos regimes específicos, dos regimes aduaneiros e da devolução personalizada do IBS, da CBS e da cesta básica nacional de alimentos. Caso a análise custo-benefício desses regimes não seja considerada positiva, a redução de alíquotas desses regimes será mudada por meio de Lei Complementar.
O mesmo deve acontecer se o IVA dual (CBS + IBS) superar os 26,5%. Nesses casos, as alíquotas dos setores beneficiados com redução dos impostos voltariam a subir de forma linear ou diferenciada por produtos ou setores. “Portanto, apesar de a estipulação do teto representar uma iniciativa positiva para evitar o incremento da carga tributária, não há garantia de que eventual extrapolação desse teto será, de fato, corrigida”, avaliam Rosa e Alves.
É impossível garantir a volta da alíquota para 26,5% até mesmo porque não é possível obrigar o Congresso Nacional a aprovar novas propostas para fazerem-na voltar para esse patamar. E, mesmo que o Congresso aprove a medida, deve haver questionamento dos contribuintes na Justiça caso estes percam benefícios tributários (medida que teria sido necessária para fazer a alíquota baixar de novo para 26,5%).
O cenário, em suma, é de insegurança quanto às alíquotas. “[ …] os contribuintes beneficiados com as alíquotas reduzidas e isenções ficam sujeitos à eventual revogação dos benefícios, para a manutenção da alíquota de referência em até 26,5%, o que pode justificar eventuais movimentações no contencioso tributário. Ainda, os demais contribuintes ficam vulneráveis à variação da alíquota, inclusive para maior, caso sejam adicionados bens e serviços à lista de beneficiados ou não sejam aprovados eventuais ajustes em 2031”, avaliam Swerts e Lacerda.
Rosa e Alves, do Vieira Rezende, fazem consideração semelhante: “Os efeitos da implementação da medida ainda são desconhecidos. Provavelmente, os setores que são atualmente beneficiados pelas exceções ou reduções do IVA dual irão questionar eventual corte ou diminuição do benefício, o que certamente representará uma dificuldade prática”.
Na entrevista abaixo, as advogadas do Freitas Ferraz e do Vieira Rezende explicam a trava do IVA dual aprovada pelo PLP 68/24 e abordam seus possíveis efeitos.
– No texto do PLP 68/24 aprovado pela Câmara dos Deputados, há um dispositivo para limitar a alíquota do IVA dual a 26,5%. Na prática, como vai funcionar esse mecanismo?
Júlia Swerts e Anna Laura Lacerda: A neutralidade é um dos pontos centrais da Reforma Tributária, que busca garantir que a carga tributária global não aumentará em relação ao que é pago atualmente, ou seja, um formato que não aumente o peso atual dos impostos, mesmo com as diferentes realidades econômicas dos contribuintes.
A trava dos 26,5% prevista no PLP 68/24, para as alíquotas de referência da Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) e do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), respeitou a projeção do Ministério da Fazenda, cujo objetivo era evitar o aumento da carga tributária atual sobre o consumo.
No entanto, na atual redação da norma regulamentadora da Reforma Tributária e na composição da lista da bens e serviços beneficiados com regimes diferenciados, houve uma elevação da projeção da alíquota de referência conjunta para cerca 27,3%, já ultrapassando a trava de 26,5% proposta. Como o texto ainda será analisado pelo Senado, é possível que essa projeção seja revista.
Paloma Rosa e Priscila Alves: O Poder Executivo da União e o Comitê Gestor do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) deverão realizar avaliação quinquenal de eficiência, eficácia e efetividade dos regimes diferenciados, dos regimes específicos, dos regimes aduaneiros e da devolução personalizada do IBS e da Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) e da Cesta Básica Nacional de Alimentos. A avaliação quinquenal poderá resultar em recomendação de revisão dos regimes e políticas anteriormente citados, o que deverá ser objeto de Lei Complementar.
Se a soma das alíquotas de referência estimadas para o IBS e a CBS resultar em percentual superior a 26,5%, o Poder Executivo federal deverá encaminhar projeto de Lei Complementar ao Congresso Nacional, após ouvir o Comitê Gestor do IBS, “propondo” a diminuição das alíquotas que tratam dos regimes especiais de redução de 30% e 60% do IVA dual.
Portanto, apesar de a estipulação do teto representar uma iniciativa positiva para evitar o incremento da carga tributária, não há garantia de que eventual extrapolação desse teto será, de fato, corrigida.
De qualquer forma, caso a proposta de correção seja aprovada, a diminuição das reduções de alíquotas poderá ser linear ou diferenciada por produtos ou setores. O projeto de lei deverá ser acompanhado com dados e cálculos que basearam a sua apresentação. As avaliações subsequentes deverão ocorrer a cada cinco anos, contados a partir de 2030.
– Como será feito o monitoramento da alíquota média do IVA? Caso ela seja ultrapassada, e considerando que há um tributo federal (CBS) e outro estadual/municipal (IBS), qual deverá ser mexido quando a alíquota exceder os 26,5%?
Júlia Swerts e Anna Laura Lacerda: O teto da alíquota de referência da CBS e do IBS será monitorado por meio da comparação da carga tributária inerente ao IVA dual, com a média da receita dos impostos a serem extintos (PIS/Cofins, ISS, ICMS e IPI) arrecadados entre 2012 e 2021, na proporção do Produto Interno Bruto (PIB). Constatado o aumento da carga tributária, o Comitê Gestor do IBS e a Receita Federal, responsável pela gestão da CBS, estarão incumbidos de avaliar a necessidade de reformulação tanto da lista de bens e serviços beneficiados quanto da alíquota de referência do IVA dual. O ajuste proposto será encaminhado ao Senado Federal para aprovação, após a homologação pelo Tribunal de Contas da União. No entanto, uma vez que a receita apurada com o IBS será destinada aos Estados e aos municípios, para fins de observância do princípio constitucional do federalismo, acredita-se que a alteração da alíquota de referência da CBS seja priorizada.
Ressaltamos que a Emenda Constitucional nº 132/2023 já previa a revisão quinquenal do custo-benefício relacionado aos regimes diferenciados e da alíquota de referência da CBS e do IBS. A definição da “trava” da alíquota conjunta do IVA dual, prevista no Projeto de Lei 68/2024, foi uma medida para antecipar para 2031 a revisão quinquenal que ocorreria em 2034, e servir de “gatilho” para o procedimento.
Assim, o Legislativo terá até março de 2031 para apresentar um projeto de Lei Complementar com medidas de ajustes ao sistema tributário proposto pela Reforma Tributária, se, ao longo da transição da CBS e do IBS for constatado que a alíquota de referência irá superar a trava 26,5% (ou 27,3%, conforme projetado).
Paloma Rosa e Priscila Alves: O artigo 9, §10º, da Emenda Constitucional 132 de 2023 prevê que sejam realizadas avaliações quinquenais de custo-benefício nos regimes diferenciados, sendo permitido que a lei fixe regime de transição para a alíquota padrão, de modo que se possibilite a implementação dos respectivos ajustes nas alíquotas de referência do IBS e da CBS.
O PLP 68/2024 prevê que o ajuste das alíquotas de referência deverá ser estabelecido por resolução do Senado Federal, tendo por base cálculos elaborados pelo Comitê Gestor do IBS e pelo Poder Executivo da União, e homologados pelo Tribunal de Contas da União. Qualquer alteração da legislação federal que reduza ou eleve a arrecadação da CBS ou do IBS deverá ser compensada pela redução ou elevação, pelo Senado Federal, da alíquota de referência da CBS e das alíquotas de referência estadual e municipal do IBS, de modo a preservar a arrecadação das esferas federativas.
Os cálculos deverão ser enviados ao Tribunal de Contas da União – acompanhados da respectiva metodologia, no prazo de 60 dias após a promulgação da lei que reduzir ou elevar a arrecadação da CBS ou do IBS – pelo Comitê Gestor do IBS, no caso de alterações legais que afetem apenas a receita do IBS; pelo Poder Executivo da União, no caso de alterações legais que afetem apenas a receita da CBS; em ato conjunto do Comitê Gestor do IBS e do Poder Executivo da União, no caso de alterações legais que afetem a receita do IBS e da CBS.
– Essa iniciativa é positiva ou negativa? Quais serão os seus efeitos e dificuldades de implementação?
Júlia Swerts e Anna Laura Lacerda: A iniciativa do Legislativo demonstra a intenção de dar maior segurança jurídica para o contribuinte e uma preocupação em manter a neutralidade do novo sistema tributário, por meio da limitação da alíquota de referência.
A análise das medidas legais para a manutenção da alíquota do IVA dual em 26,5% em 2031 é garantida pelo PLP 68/24, porém, não é possível obrigar a sua aprovação pelo Poder Legislativo.
Nesse contexto, os contribuintes beneficiados com as alíquotas reduzidas e isenções ficam sujeitos à eventual revogação dos benefícios, para a manutenção da alíquota de referência em até 26,5%, o que pode justificar eventuais movimentações no contencioso tributário.
Ainda, os demais contribuintes ficam vulneráveis à variação da alíquota, inclusive para maior, caso sejam adicionados bens e serviços à lista de beneficiados ou não sejam aprovados eventuais ajustes em 2031.
Paloma Rosa e Priscila Alves: A iniciativa de se estabelecer um teto para a alíquota do IBS e da CBS, a princípio, mostra-se positiva, na medida em que o objetivo seria inibir o aumento descontrolado de carga tributária ao consumidor final. No entanto, o mecanismo escolhido para garantir essa medida já é objeto de numerosos questionamentos e discussões sobre sua possível efetividade e possível inconstitucionalidade.
Ademais, o patamar de 26,5% ainda é uma estimativa, para qual ainda não se tem parâmetros de assertividade, tendo em vista que ainda não foi iniciada a transição para os novos tributos.
Os efeitos da implementação da medida ainda são desconhecidos. Provavelmente, os setores que são atualmente beneficiados pelas exceções ou reduções do IVA dual irão questionar eventual corte ou diminuição do benefício, o que certamente representará uma dificuldade prática.
– Em sua visão, o mecanismo aprovado garantirá que as alíquotas do IVA dual não excedam o teto de 26,5%?
Júlia Swerts e Anna Laura Lacerda: Como mencionado, não há garantia que o Projeto de Lei, que vier a ser apresentado em 2031, seja aprovado. Mesmo diante da campanha do Legislativo para manter a neutralidade do novo sistema tributário e não aumentar a carga tributária, a aprovação de quaisquer medidas dependerá do governo e membros do Legislativo.
Assim, mesmo que tenha sido demonstrada a intenção de observar a trava dos 26,5%, não há como prever que a alíquota será mantida a longo prazo. Cenário este que já se nota em 2024, com as diferentes projeções para a alíquota de referência do IVA dual, variando entre 26,5% e 27,3% devido à composição da lista de bens e serviços sujeitos aos regimes diferenciados.
Paloma Rosa e Priscila Alves: Certamente não. O mecanismo tem natureza repressiva, de forma que este apenas será acionado caso o referido teto seja ultrapassado. Além disso, não há como afirmar, na prática, que o mecanismo de avaliação quinquenal será eficaz em reestabelecer as alíquotas em patamar abaixo do teto de 26,5%. Isso porque ainda não há estimativas da perda de receita e do custo-benefício que as exceções legais e os redutores legais poderão gerar.
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