As dúvidas sobre a não-cumulatividade da Reforma Tributária

Obrigação de contribuinte comprovar o recolhimento de tributos para se aproveitar de créditos pode ser um empecilho

0

Um dos objetivos da Reforma Tributária sobre o consumo é implementar um sistema sem impostos em cascata, ou seja, que não haja tributos que incidem sobre outros tributos – atualmente, em várias situações os contribuintes acabam pagando de forma duplicada. Mas, mesmo tendo sido apresentada a proposta de regulamentação da reforma, por meio do Projeto de Lei Complementar 68/24 (PLP 68/24), ainda há vários pontos em aberto que não permitem uma avaliação assertiva sobre se a não-cumulatividade plena será atingida.

“Entendemos que ainda não se pode garantir a efetividade da não-cumulatividade plena. Apesar de o PLP 68/24 pretender efetivar plenamente a não-cumulatividade da CBS e do IBS, existem alguns pontos de atenção que, em nosso entendimento, precisarão ser mais bem endereçados e observados. Dentre os pontos, sem dúvidas, se encontra aquele relativo à obrigação de comprovação do recolhimento das exações nas etapas anteriores para que o contribuinte possa se aproveitar dos créditos”, avaliam Paloma Rosa e Maria Alice Laranjeira, sócia e associada do Vieira Rezende Advogados.

A não-cumulatividade está relacionada ao conceito de Imposto sobre Valor Agregado, o IVA, pelo qual o tributo só é cobrado uma vez em cada etapa da cadeia de produção. Para que isso ocorra, o tributo que incidiu sobre uma etapa anterior da cadeia pode ser deduzido do imposto que incidirá nas cadeias posteriores, o que ocorre por meio da geração de créditos tributários que serão abatidos. Na prática, será necessário que de fato esses créditos possam ser usados para que a não-cumulatividade plena seja implementada. São IVAs tanto o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) quanto a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), que vão substituir o ICMS,  o Pis e a Cofins, o ISS e o IPI.

Em tese, quando o contribuinte pagar por um bem ou um serviço que adquiriu, ele terá direito ao crédito referente ao tributo pago na fase anterior – mas apenas se esse tributo tiver sido recolhido pelo outro contribuinte. É aí que reside a questão: como um contribuinte irá comprovar se o contribuinte que estava no elo anterior da cadeia quitou o imposto? Esse processo será automático ou burocrático?

O que o PLP 68/24 prevê sobre a não-cumulatividade

Rosa e Laranjeira explicam que o PLP 68/24 prevê que a apropriação dos créditos será condicionada à comprovação – por parte dos contribuintes – da existência de documento fiscal eletrônico que seja “hábil e idôneo”, assim definindo como aquele que atender às exigências estabelecidas em regulamento. A implementação desse sistema depende de regulamentação adicional e da criação de sistemas e procedimentos apropriados. “De todo modo, a depender da referida regulamentação, essa previsão poderá transferir aos contribuintes um ônus demasiadamente custoso e burocrático – o qual deverá ser considerado para fins de aferição do princípio da cooperação entre Fisco e contribuinte –, e poderá gerar incertezas quanto à efetiva possibilidade de utilização dos créditos.”

Na entrevista abaixo, as advogadas do Vieira Rezende abordam a implementação da não-cumulatividade prevista pela Reforma Tributária, conforme o PLP 68/24.


– O que a regulamentação da reforma tributária (PLP 68/24) prevê com relação à não-cumulatividade dos tributos?

Paloma Rosa e Maria Alice Laranjeira: A regulamentação afirma, logo no início do seu conteúdo, que o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) serão informados pelo princípio da neutralidade, princípio este que, em nosso entendimento, guarda na não-cumulatividade plena e no creditamento amplo a sua mais concreta e adequada ferramenta de observância e eficácia. A regras gerais relativas à não-cumulatividade da CBS e do IBS estão previstas nos artigos 28 a 37 do PLP 68/24.

Os contribuintes sujeitos ao regime regular da CBS e do IBS poderão apurar créditos dos tributos quando ocorrer o pagamento – em sua ampla acepção – dos valores de CBS e IBS incidentes sobre as operações nas quais seja adquirente de bem ou serviço. Ou seja, a não cumulatividade está condicionada ao pagamento das exações na etapa anterior.

Importante notar que as apurações de créditos deverão ocorrer de maneira segregada para o IBS e para a CBS, sendo vedada em qualquer hipótese a compensação de créditos de IBS com valores de CBS e vice-versa.


– De que forma a não-cumulatividade será implementada? O contribuinte terá que efetuar algum processo de reconhecimento dos seus créditos ou isso se dará de forma automática?

Paloma Rosa e Maria Alice Laranjeira: De acordo com o artigo 28, inciso II do PLP 68/24, a apropriação dos créditos será condicionada à comprovação – por parte dos contribuintes – da existência de documento fiscal eletrônico que seja “hábil e idôneo”, assim definindo como aquele que atender às exigências estabelecidas em regulamento.

Ainda não se sabe como essa comprovação ocorrerá na prática – se será mandatória da apropriação prévia do crédito (hipótese mais provável) ou passível, ainda que apenas em alguns casos, de ser solicitada em processo de fiscalização ulterior –, vez que sua implementação dependerá de regulamentação adicional, bem como da criação de sistemas e procedimentos apropriados em prestígio ao princípio da praticabilidade administrativa.

De todo modo, a depender da referida regulamentação, essa previsão poderá transferir aos contribuintes um ônus demasiadamente custoso e burocrático – o qual deverá ser considerado para fins de aferição do princípio da cooperação entre Fisco e contribuinte –, e poderá gerar incertezas quanto à efetiva possibilidade de utilização dos créditos.


– Há situações em que o contribuinte não fará jus a créditos do IBS e da CBS? Em caso afirmativo, quais são?

Paloma Rosa e Maria Alice Laranjeira: Sim. Bens e serviços considerados como de “uso e consumo pessoal” não darão direito a crédito. São eles: joias, pedras e metais preciosos; obras de arte e antiguidades de valor histórico ou arqueológico; bebidas alcóolicas; derivados do tabaco; armas e munições; e bens e serviços recreativos, esportivos e estéticos.

Haverá exceção, contudo, quando estes bens e serviços forem necessários à realização de operações pelo contribuinte; um exemplo, previsto pelo artigo 29, parágrafo único, do PLP 68/24, é a aquisição de armas e munições para utilização por empresas de segurança.

Também será anulado o crédito referente a operações anteriores em casos de operações isentas e imunes, o que ocorrerá proporcionalmente ao valor das operações imunes e isentas sobre o valor de todas as operações do fornecedor. Exceção a essa regra se dará, como exemplo, em relação às exportações. Em relação à alíquota zero, haverá, como regra, garantia da manutenção do crédito relativo a operações anteriores pelo contribuinte beneficiado.


– Até o momento, de acordo com o PLP 68/24, a reforma tributária atingirá o objetivo de alcançar a pretendida não-cumulatividade dos impostos?

Paloma Rosa e Maria Alice Laranjeira: Entendemos que ainda não se pode garantir a efetividade da não cumulatividade plena. Apesar de o PLP 68/24 pretender efetivar plenamente a não cumulatividade da CBS e do IBS, existem alguns pontos de atenção que, em nosso entendimento, precisarão ser mais bem endereçados e observados. Dentre os pontos, sem dúvidas, se encontra aquele relativo à obrigação de comprovação do recolhimento das exações nas etapas anteriores para que o contribuinte possa se aproveitar dos créditos.


Leia também

Aberta a discussão sobre regimes diferenciados

Os pecados punidos com tributação

Sistema split payment vai afetar fluxo de caixa de empresas

A importância dos mecanismos de controle do cashback

A polêmica em torno dos planos de saúde

Deixe uma resposta

Seu endereço de e-mail não será publicado.