Antecipação de herança será afetada por julgamento do STF
Decisão da corte sobre incidência de imposto em doações feitas a valor de mercado terá impacto no planejamento sucessório
Ao doar um bem pelo seu valor de mercado, o doador deve pagar Imposto de Renda Pessoa Física (IRPF) ou apenas o imposto que incide sobre heranças e doações, o ITCMD? Essa pergunta deverá ser respondida pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que está julgando uma ação na qual a Fazenda Nacional tenta cobrar o IRPF de um doador que fez antecipação de herança para seus filhos, argumentando que haveria ganho de capital quando o valor de mercado do bem doado supera o de aquisição. O julgamento foi suspenso por pedido de vista do ministro Luiz Fux, após dois votos favoráveis ao contribuinte.
“O julgamento desse caso será de extrema importância para todas as famílias que desejam realizar um planejamento patrimonial e sucessório, optando por antecipar os efeitos de uma sucessão por meio de doações. Isso porque, caso seja acatada a tese fazendária, além dos efeitos do recolhimento do ITCMD sobre as operações de doação, também deverá ser levado em consideração a incidência de IRPF, tornando as operações mais onerosas e, muitas vezes, desvantajosas”, avaliam Michel Siqueira Batista e Giovanna Milana, sócio e associada do Vieira Rezende Advogados.
Júlia Barreto e Ligia Merlo, associadas do Freitas Ferraz Advogados, explicam que, apesar de não ser um julgamento com repercussão geral (que vincula o entendimento para todos os tribunais), ele será um forte precedente sobre o assunto. “Esse julgamento impacta todos os contribuintes que desejam realizar antecipação de herança, especialmente aqueles que tenham interesse em vender os bens recebidos. Isso se dá porque o custo de aquisição (via antecipação de herança) será definido com base no valor de mercado, evitando ou reduzindo o ganho de capital, já que o custo de aquisição estará igual ou similar ao valor de alienação.”
O Recurso Extraordinário nº 1.439.539
O caso (Recurso Extraordinário nº 1.439.539) trata de uma antecipação de herança feita por um pai a seus filhos, pelo valor de mercado. Os dois lados da questão estão bem fundamentados. Para os contribuintes, a tributação do doador pelo IRPF seria uma forma de bitributação, já que sobre as doações incide o imposto sobre heranças e doações, o ITCMD – e, além disso, o doador teria um decréscimo patrimonial por se desfazer de um bem, e não acréscimo, portanto a tributação não faria sentido.
Para a Fazenda Nacional, há uma diferença entre o valor de aquisição do bem e o valor de mercado quando ele é doado – e, por isso, a tributação seria aplicável (não à herança, mas sim ao patrimônio do doador). Ou seja, a Fazenda considera que a tributação é relativa à valorização do patrimônio anteriormente ocorrida. Outro ponto da argumentação, explicam Batista e Milana, é que se esse acréscimo patrimonial verificado com a valorização do bem não fosse tributado nessa oportunidade pelo doador, ele jamais seria, uma vez que o donatário irá receber o bem já valorizado.
Batista e Milana consideram que seria razoável aceitar a ocorrência simultânea dos fatos geradores do ITCMD e do IRPF, e acreditam que ainda é impossível prever alguma tendência para o julgamento.
Já Merlo e Barreto acreditam que o desfecho pode ser favorável para o contribuinte, pois há isenção expressa prevista na legislação – no artigo 22, III, da Lei nº 7.713/88, que permaneceria vigente mesmo após a entrada em vigor do artigo 23 da Lei nº 9.532/97, que trata sobre a exigência de IR em doação a valor de mercado, devido à ausência de revogação expressa desse dispositivo. Além disso, consideram que não haveria acréscimo patrimonial dos donatários, além de a cobrança de IR no caso representar bitributação. Elas lembram, ainda, que no ano passado, ao julgar o ARE nº 1.387.761, “o órgão decidiu que o IR não seria devido em doações realizadas para antecipação de legítima, pois não há “acréscimo patrimonial” disponível para o doador.”
Na entrevista abaixo, os advogados do Freitas Ferraz e do Vieira Rezende detalham o assunto do julgamento.
– O que o Supremo Tribunal Federal (STF) irá julgar no Recurso Extraordinário (RE) nº 1.439.539?
Michel Siqueira Batista e Giovanna Milana: O STF irá julgar no RE nº 1.439.539 a constitucionalidade da incidência de IRPF sobre a doação de bens em adiantamento de legítima a ser cobrado do doador. O caso analisa hipótese em que a doação é realizada a valor de mercado e, portanto, pretende-se aplicar o artigo 23 da Lei nº 9.532/1997 que determina a tributação da diferença a maior entre o valor constante da declaração de bens do de cujus ou doador (custo de aquisição) e o valor de mercado.
Segundo a Fazenda Nacional, defensora da tese, a antecipação da herança de um pai aos seus filhos deve ser tributada não só pelo ITCMD, cujo contribuinte seria o donatário, mas também pelo IRPF e, nesse caso, o contribuinte seria o doador.
Ligia Merlo e Júlia Barreto: O Recurso Extraordinário (RE) nº 1.439.539 se refere à medida judicial apresentada por contribuinte que desejava fazer a doação (em adiantamento de legítima) sem a incidência de Imposto de Renda (IR) sobre o valor da transmissão que superasse o custo de aquisição desses bens (ganho de capital na doação feita a valor de mercado).
No Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4), a questão foi resolvida favoravelmente ao contribuinte, prevalecendo o entendimento de que não é possível exigir IR sobre esse tipo de transmissão. Diante dessa decisão, a Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (PGFN) interpôs um Recurso Extraordinário, requerendo a reforma da decisão que deu provimento ao recurso do contribuinte.
Atualmente, a questão está pendente de julgamento pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que deve analisar a constitucionalidade da cobrança de IR sobre o ganho de capital sobre doações em antecipação de herança.
– Qual é a importância desse julgamento e a quem ele vai afetar?
Michel Siqueira Batista e Giovanna Milana: O julgamento desse caso será de extrema importância para todas as famílias que desejam realizar um planejamento patrimonial e sucessório, optando por antecipar os efeitos de uma sucessão por meio de doações. Isso porque, caso seja acatada a tese fazendária, além dos efeitos do recolhimento do ITCMD sobre as operações de doação, também deverá ser levado em consideração a incidência de IRPF, tornando as operações mais onerosas e, muitas vezes, desvantajosas.
Ligia Merlo e Júlia Barreto: O julgamento do STF é importante para endereçar a controvérsia existente entre a Fazenda Nacional e os contribuintes sobre a possibilidade de cobrança do IR em doações feitas a valor de mercado.
Apesar de não ser um julgamento com repercussão geral (que vincula o entendimento para todos os tribunais), ainda será um forte precedente sobre o assunto, especialmente caso afaste a tributação pelo IR nesses casos, em oposição à aplicação do artigo 23 da Lei nº 9.532/97.
Esse julgamento impacta todos os contribuintes que desejam realizar antecipação de herança, especialmente aqueles que tenham interesse em vender os bens recebidos. Isso se dá porque o custo de aquisição (via antecipação de herança) será definido com base no valor de mercado, evitando ou reduzindo o ganho de capital, já que o custo de aquisição estará igual ou similar ao valor de alienação.
– Quais são os argumentos da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) em prol da tributação, pelo Imposto de Renda, do patrimônio doado? E quais são os argumentos contrários, apresentados pelos contribuintes?
Michel Siqueira Batista e Giovanna Milana: Segundo a Fazenda Nacional, o doador aumenta o patrimônio ao fazer essa doação, pois existe uma valorização do bem (isto é, a diferença entre o valor histórico e o de mercado da herança), sendo assim, o que se pretende é uma tributação da valorização do patrimônio do doador que já havia ocorrido anteriormente, mas que somente foi aferida no momento da avaliação do bem realizada por opção legal do doador (na hipótese em que ele opta por transferir o ativo a valor de mercado, conforme permissivo no artigo 23 da Lei 9.532/1997). Ainda em linha com a argumentação do fisco, caso esse acréscimo patrimonial verificado com a valorização do bem não seja tributado nesta oportunidade pelo doador, ele jamais será, já que o donatário irá receber o bem já valorizado.
Por outro lado, os contribuintes defendem que essa tributação representaria um bis in idem, já que as transferências tanto por doação, quanto por herança, já estão sujeitas à tributação pelo ITCMD. Com efeito, tributar a doação já cobrada pelo Estado, feriria, inclusive, o pacto federativo.
Ligia Merlo e Júlia Barreto: Em seus argumentos, a PGFN sustenta que a doação, por si só, não representa acréscimo patrimonial para as partes. Contudo, quando essa operação acontece a valor de mercado, tem-se uma situação distinta, que é amparada pelo artigo 23 da Lei nº 9.532/97 e pelo §3º do artigo 3º da Lei nº 7.713/88. Nesses casos (da doação a valor de mercado), seria apurado o ganho de capital, que deve ser tributado pelo IR.
Por outro lado, os contribuintes sustentam que a operação — independentemente de ser realizada a valor de mercado — estaria abrangida pela isenção prevista no artigo 22, III, da Lei nº 7.713/88, que permaneceria vigente mesmo após a entrada em vigor do artigo 23 da Lei nº 9.532/97 (que trata sobre a exigência de IR em doação a valor de mercado), devido à ausência de revogação expressa desse dispositivo.
Além disso, os contribuintes argumentam que os únicos que podem experimentar acréscimo patrimonial são os donatários, e não os doadores, que constam na lei como contribuintes do IR. Ou seja, além de se desfazer do bem via doação, o doador ainda se vê obrigado a recolher o imposto, o que não condiz com o fato gerador do IR, que exige um ganho da parte que é obrigada a pagar o tributo.
– Em sua visão, qual dos lados está mais bem fundamentado? É possível delinear alguma tendência por parte do STF?
Michel Siqueira Batista e Giovanna Milana: Embora haja bons argumentos para os dois lados, havendo a possibilidade de o contribuinte optar por atribuir aos bens transferidos valor de mercado ou manter o custo histórico, nos parece que seria razoável aceitar a ocorrência simultânea dos fatos geradores do ITCMD e do IRPF.
Por ora não é possível prever alguma tendência por parte do STF, já que a corte possui acórdãos na 1ª e 2ª Turma, bem como decisões monocráticas que acataram ambas as teses (ou seja, tanto decisões favoráveis – e.g., ARE nº 1.387.761/2022 – quanto desfavoráveis ao contribuinte – e.g., RE nº 1.269.201/2020).
Ligia Merlo e Júlia Barreto: Em nossa opinião, os contribuintes têm maior chance de êxito na discussão, seja em razão da isenção expressa prevista na legislação, bem como da ausência de acréscimo patrimonial para os donatários. Além disso, a cobrança de IR nessas operações representaria bitributação (o que é vedado pela legislação), em razão da exigência do Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCD), cuja cobrança é de competência dos Estados e Distrito Federal.
Para tratarmos de possível linha de entendimento pelo STF, lembramos que no ano passado, ao julgar o ARE nº 1.387.761, o órgão decidiu que o IR não seria devido em doações realizadas para antecipação de legítima, pois não há “acréscimo patrimonial” disponível para o doador.
Embora a questão ainda seja controversa entre a 1ª e 2ª Turmas do STF, o Recurso Extraordinário nº 1.439.539 – objeto da nossa análise – já conta com dois votos favoráveis ao contribuinte. Portanto, considerando os precedentes anteriores sobre o tema (como o ARE nº 1.387.761), é possível argumentar que há tendência no STF em decidir pela não exigência do IR sobre essas operações.