Decisão do STJ aumenta segurança de investidores
Fisco terá que comprovar que operações não fazem jus à possibilidade de aproveitamento fiscal do ágio interno
As operações de fusões e aquisições envolvendo empresas estrangeiras ganharam maior segurança jurídica após decisão da 1ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) envolvendo aproveitamento fiscal de ágio interno. Na decisão, a corte manifestou o seu entendimento sobre dois pontos que historicamente geram embates entre contribuintes e o fisco: o ágio interno e o uso de empresa veículo nas operações de M&A. O resultado é que agora a Receita Federal terá de demonstrar que determinada operação não faz jus ao aproveitamento do ágio interno.
Na visão de advogados tributaristas do Freitas Ferraz e do Vieira Rezende Advogados, a decisão foi positiva.“[…] essa decisão traz muito mais conforto ao investidor estrangeiro, pois indica que o fisco precisará provar, daqui em diante, para vetar o aproveitamento do ágio, que toda a operação foi simulada ou artificial”, afirmam Rafael Amorim e Priscila Generoso, sócio e associada do Vieira Rezende Advogados.
Thiago Braichi e Sávio Hubaide, sócio e associado do Freitas Ferraz Advogados, dizem que o aspecto central da decisão é que a “Fazenda Nacional não pode presumir de forma absoluta a indedutibilidade nas operações que envolvem ágio interno ou empresas veículos, mas deve demonstrar, caso a caso, eventual artificialidade de cada operação.”
O julgamento da 1ª Turma do STJ se refere aos Embargos de Declaração apresentados pela Fazenda Nacional no julgamento do Recurso Especial (REsp 2026473-SC). Em julgamento realizado em setembro de 2013, a Cremer saiu vitoriosa e teve autorização para deduzir o ágio amortizado em uma operação de reestruturação feita em 20024 da base de cálculo do IRPJ e da CSLL. A Fazenda Nacional recorreu – e a corte em maio ratificou a decisão, mantendo-a inalterada. Agora, na avaliação dos advogados, praticamente inexiste a possibilidade de haver novo recurso. “No âmbito judicial, esse caso é representativo, já que é o primeiro de que se tem conhecimento no Superior Tribunal de Justiça (STJ) que enfrenta dois dos pontos mais relevantes de discussão (ágio interno e uso de empresa veículo)”, avaliam Amorim e Generoso.
Empresa veículo, ágio interno, real adquirente e propósito negocial
Hubaide e Braichi explicam que, nas operações de M&A que usam empresas veículo, a Fazenda Nacional costuma alegar que não há propósito negocial porque essas empresas seriam constituídas tão somente para transferir a participação societária da investida para o investidor. Além disso, essas empresas teriam vida curta porque seriam extintas após a operação ter sido viabilizada e não cumpririam o requisito da expectativa de rentabilidade futura para permitir a dedução do ágio incorrido. Outro questionamento do fisco – principalmente quando envolve investidores estrangeiros – é relativo ao real adquirente, que exigiria uma confusão patrimonial entre a empresa investidora e a investida para que o aproveitamento do ágio fosse permitido. “Ocorre que, como bem exposto na decisão do STJ, a ausência de propósito negocial, a proibição da utilização de empresa veículo e a tese do real adquirente não encontram respaldo legal”, afirmam.
Na entrevista abaixo, Amorim, Generoso, Braichi e Hubaide explicam por que a questão da amortização do ágio interno costuma gerar embates e abordam a importância da decisão da 1ª Turma do STJ no REsp 2026473-SC.
– Recentemente, a 1ª Turma do STJ negou recurso da Fazenda Nacional, no âmbito do processo que julgava o a amortização fiscal do ágio interno durante a reestruturação da Cremer. Qual é a importância da reafirmação da decisão anteriormente tomada no REsp 2.026.473?
Sávio Hubaide e Thiago Braichi: A decisão que rejeitou o recurso da Fazenda Nacional é importante por manter inalterada a fundamentação exposta pela 1ª Turma no julgamento do Recurso Especial, afastando a alegação de vícios naquela decisão. Por se tratar do primeiro precedente sobre o tema no Superior Tribunal de Justiça (STJ), a questão dificilmente será apreciada pela 1ª Seção do STJ, e caberá à Fazenda, se for o caso, tentar submeter a questão ao Supremo Tribunal Federal (STF), para análise sob a ótica constitucional.
No julgamento do Recurso Especial, a 1ª Turma do STJ decidiu importantes e conhecidas teses sobre ágio, que há tempo geram conflitos entre fisco e contribuintes. Na decisão, o STJ reconheceu a possibilidade de dedução do ágio interno nas operações realizadas antes da Lei 12.973/14, bem como de utilização das chamadas “empresas-veículo”, salvo nos casos de comprovadas simulações e fraudes.
Quanto ao ágio interno, o principal fundamento foi o de que quando o legislador quis vedar sua dedutibilidade, o fez de forma expressa na Lei 12.973/14. Já quanto à empresa veículo, afirma que não há proibição legal para a utilização desse instrumento – pelo contrário, há autorização na Lei das Sociedades Anônimas (Lei 6.404/76) e razões negociais para tanto, sobretudo nas operações com investidores estrangeiros. Por fim, afastou a tese do “real adquirente”, por não encontrar fundamento legal.
Portanto, o centro da posição da 1ª Turma do STJ é o de que a Fazenda Nacional não pode presumir de forma absoluta a indedutibilidade nas operações que envolvem ágio interno ou empresas veículos, mas deve demonstrar, caso a caso, eventual artificialidade de cada operação.
Rafael Amorim e Priscila Generoso: A amortização fiscal de ágio já é há algum tempo um dos temas mais controvertidos na jurisprudência administrativa, em razão dos altos valores envolvidos, do número de casos e da relevância das operações. No âmbito judicial, esse caso é representativo, já que é o primeiro de que se tem conhecimento no Superior Tribunal de Justiça (STJ) que enfrenta dois dos pontos mais relevantes de discussão (ágio interno e uso de empresa veículo). O julgamento de mérito terminou de forma favorável ao contribuinte, em setembro de 2023 (REsp nº 2.026.473/SC). Em maio de 2024 foram rejeitados os embargos de declaração da Fazenda, praticamente inviabilizando qualquer recurso adicional.
Os temas principais são a amortização fiscal de ágio em operações entre partes relacionadas (“ágio interno”) antes da edição da Lei 12.973/14, que expressamente vedou essa possibilidade, e o uso de “empresa veículo” para viabilizar essa amortização em determinadas situações.
Portanto, embora essa decisão não seja vinculante para todos os contribuintes, ela representa uma sinalização positiva, podendo influenciar futuras decisões administrativas e judiciais, rechaçando um argumento que vinha sendo utilizado de maneira reiterada pela Fazenda de que qualquer operação envolvendo ágio interno ou empresa veículo seria necessariamente artificial ou simulada. A decisão pontua que essa presunção jamais pode ser absoluta e que compete ao fisco, caso a caso, demonstrar eventual artificialidade.
– Por que o fisco costuma ver problemas na criação de empresas veículo durante as operações de fusões e aquisições?
Sávio Hubaide e Thiago Braichi: Nas operações que utilizam empresas veículo, a Fazenda Nacional costuma alegar a ausência de propósito negocial, pois essas empresas seriam constituídas tão somente para transferir a participação societária da investida para o investidor. Outros argumentos são a curta existência dessas empresas, que são constituídas para viabilizar a operação e posteriormente extintas, e que não cumpririam o requisito da expectativa de rentabilidade futura para permitir a dedução do ágio incorrido.
Mais recentemente, sobretudo nas operações com investidores estrangeiros, a Fazenda Nacional tem defendido a tese do “real adquirente”, segundo a qual a legislação teria um requisito intrínseco que exigiria confusão patrimonial entre investida e investidor. Isto é, se a origem dos recursos para a aquisição da participação societária é externa, que não a incorporadora, não haveria a confusão patrimonial necessária para permitir o aproveitamento do ágio.
Ocorre que, como bem exposto na decisão do STJ, a ausência de propósito negocial, a proibição da utilização de empresa veículo e a tese do real adquirente não encontram respaldo legal. De acordo com a legislação atual, os requisitos para amortização do ágio são aquisição de participação societária com sobrepreço, desdobramento do custo fundamentado em laudo e absorção do patrimônio em virtude de operação societária de incorporação, fusão ou cisão. Anteriormente, havia o requisito adicional de fundamentar o ágio na expectativa de rentabilidade futura da adquirida.
Andou bem o STJ ao destacar que a Fazenda pode questionar a dedutibilidade, desde que devidamente comprovada a fraude no caso concreto, mas a utilização da empresa veículo, por si só, não justifica a glosa do ágio.
Rafael Amorim e Priscila Generoso: Em diversas operações, principalmente envolvendo investidores estrangeiros na posição de adquirentes, foram criadas empresas no Brasil que recebiam incrementos de capital por esses investidores para que fizessem a compra da participação junto ao vendedor. Ocorre que, de acordo com a legislação, para a amortização e aproveitamento do ágio, uma das empresas (investidora ou investida) precisa ser incorporada. Normalmente a empresa incorporada acaba por ser a investidora, que tem curta duração, já que a investida, por ser a empresa operacional que deu fundamento ao ágio, naturalmente permaneceria ativa.
Ou seja, o fisco entende que a empresa investidora é “incluída” na operação de forma artificial, apenas para viabilizar a amortização do ágio, não sendo a real adquirente (que seria a empresa estrangeira, a qual não tem possibilidades de aproveitar o ágio).
– Alguns profissionais consideram que a decisão recente do STJ dá mais segurança a investidores estrangeiros. Você concorda com essa visão? Por quê?
Sávio Hubaide e Thiago Braichi: A decisão aumenta a segurança jurídica nessas operações, mas ainda não é possível afirmar que a questão está pacificada. Como mencionado, trata-se do primeiro precedente em que o STJ analisou o tema, e provavelmente outros casos semelhantes ainda serão analisados tanto pelo STJ quanto pelo STF.
De toda forma, é uma importante sinalização para investidores estrangeiros, haja vista que em muitos casos a constituição de empresas veículo é imprescindível (ou a única opção) para viabilizar a operação. A decisão do STJ permite um pouco mais de previsibilidade do custo tributário da operação.
Além disso, a possibilidade de dedução do ágio nessas operações com empresas veículos confere tratamento isonômico aos investidores estrangeiros e nacionais, o que pode tornar o investimento mais atrativo.
Rafael Amorim e Priscila Generoso: Sim. Como indicado na resposta anterior, o fisco vem autuando principalmente operações envolvendo investidores estrangeiros, por mais que existam diversos argumentos favoráveis à constituição de empresa brasileira para realizar a aquisição. Entre eles há requisitos regulatórios, a depender do setor, de viabilidade para se tomar empréstimos no Brasil para a realização da aquisição.
Portanto, essa decisão traz muito mais conforto ao investidor estrangeiro, pois indica que o fisco precisará provar, daqui em diante, para vetar o aproveitamento do ágio, que toda a operação foi simulada ou artificial.
– Essa decisão do STJ impacta as questões envolvendo o aproveitamento fiscal do ágio interno ocorridas após 2014 ou se restringe às operações até 2014?
Sávio Hubaide e Thiago Braichi: Especificamente quanto ao ágio interno, a decisão do STJ pode influenciar no julgamento somente das operações ocorridas até 2014. Isso porque, até então havia uma lacuna legal, sem nenhuma vedação expressa ao aproveitamento do ágio interno. Todavia, a Lei 12.973/14 passou a vedar expressamente essa possibilidade.
Há outros fundamentos capazes de sustentar o aproveitamento desse ágio interno, em sua maioria de ordem constitucional, a exemplo do conceito de renda e do princípio da renda líquida. Contudo, além de questões constitucionais serem de competência do STF, o fundamento da decisão do STJ foi justamente a inexistência de vedação legal até 2014.
Quanto às demais discussões, como a utilização de empresas-veículo e a tese do real adquirente, a decisão do STJ impacta da mesma forma as operações ocorridas antes e após 2014.
Rafael Amorim e Priscila Generoso: No que se refere especificamente ao ágio interno, como há vedação expressa de aproveitamento em operações entre partes relacionadas a partir da vigência da Lei 12.973/14, essa decisão só se aplicaria a casos anteriores.
De qualquer forma, como a decisão traz elementos importantes quanto à caracterização da artificialidade das operações envolvendo ágio, ela provavelmente impactará diversos processos, se não especificamente no que toca ao ágio interno, sem dúvida em relação aos demais aspectos envolvendo o ágio em operações de aquisição e reorganizações societárias.