Aberta a discussão sobre regimes diferenciados
Projeto de Lei Complementar 68/24 traz lista de serviços e atividades contempladas com redução de alíquotas
Um dos movimentos que já podem ser sentidos após o governo ter apresentado a proposta de regulamentação da Reforma Tributária é a luta de diversos setores e atividades para serem incluídas nos chamados regimes diferenciados, que contarão com descontos ou até mesmo isenção total de impostos. A preocupação dos especialistas é que a excessiva inclusão de benefícios fiscais acabe tendo o efeito de elevar a alíquota média do Imposto sobre Valor Agregado (IVA) Dual, caminhando justamente no sentido oposto ao pretendido pela reforma, que seria o de aumentar a justiça tributária.
Para Gyedre Carneiro de Oliveira, Pedro Miranda Roquim e Bárbara Borges, sócia e parceiros do Carneiro de Oliveira Advogados, a proposta está bem desenhada e parcialmente negociada, mas mudanças devem vir, especialmente no que diz respeito às regras de exceção. “O problema nessa discussão é o fato de que a criação de exceções à tributação pode implicar na majoração da alíquota de referência o mesmo desfigurar a natureza do IBS e CBS, fazendo com que tenhamos um modelo de Imposto sobre Valor Agregado (IVA) totalmente diferente do resto dos países.”
“Do ponto de vista da isonomia entre contribuintes, a justiça tributária idealizada pela Reforma Tributária seria promovida por meio da extinção de benefícios fiscais e regimes especiais. Não obstante, na prática, o PLP 68/24 está propondo a instituição de diferentes regimes de tributação para contribuintes e bens/serviços individualizados, na contramão da justiça tributária inicialmente idealizada, enfraquecendo a ideia de afastar tratamentos diferenciados entre contribuintes em situação equivalente”, avalia Anna Flávia Moreira, associada do Freitas Ferraz Advogados.
Regimes diferenciados e regimes especiais
O Projeto de Lei Complementar 68/24 (PLP 68/24) prevê regimes diferenciados com alíquotas reduzidas em 30%, 60% ou em 100% (veja na entrevista abaixo a lista de serviços e bens que fazem jus a cada percentual). No caso dos alimentos, o Anexo I do PLP 68/24 trouxe a lista de produtos, definindo a composição da “Cesta Básica Nacional de Alimentos”, que terão as alíquotas zeradas. “Se aprovada nesses termos, a regulamentação da Reforma Tributária promoverá a desoneração dos produtos definidos na lei complementar e que, atualmente, não são beneficiados pela redução de alíquota a zero”, afirma Moreira. No entanto, ela lembra que há economistas que ressaltam que, quanto maiores forem os itens alimentícios incluídos na cesta, mais elevada será a alíquota dos demais produtos – o que poderia prejudicar os mais pobres, em vez de beneficiá-los.
O Ministério da Fazenda projeta redução da carga tributária média dos alimentos favorecidos pelas cestas básica e estendida de 11,6% para 4,8%. Se for considerado o cashback para as famílias de baixa renda, a carga tributária cairia para 3,9%.
Carneiro de Oliveira, Roquim e Borges explicam que, no tocante aos medicamentos, a Reforma Tributária prevê a redução do IBS e da CBS em 60% para 850 tipos de medicamentos, além de estabelecer alíquota zero de IBS e CBS para 383 remédios e para compras públicas de medicamentos.
Na entrevista abaixo, os advogados do Freitas Ferraz e do Carneiro de Oliveira e seus parceiros explicam a diferença entre os regimes diferenciados e especiais e de que forma eles se relacionam com a alíquota dos produtos e serviços em geral.
– De acordo com o texto da reforma tributária, o que são os regimes tributários diferenciados e específicos? O que o Projeto de Lei que regulamenta a reforma trouxe com relação a esses regimes?
Anna Flávia Moreira: Os regimes diferenciados previstos pela Reforma Tributária (Emenda Constitucional nº 32/23) contemplam reduções das alíquotas do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e da Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) – a serem aplicadas sobre as alíquotas padrão estabelecidas por cada ente federativo – ou a concessão de créditos presumidos. Esses regimes devem ser efetivados de maneira uniforme em todo o território nacional e se aplicam, no que couber, à importação dos bens e serviços contemplados.
Por sua vez, os regimes específicos trazidos pela Reforma Tributária são aqueles nos quais os modelos de apuração diferem do modelo padrão – não sendo necessariamente mais benéficos. Os setores contemplados são: combustíveis, serviços financeiros, planos de assistência à saúde, concursos de prognósticos, bens imóveis, cooperativas, bares e restaurantes, hotelaria, parques de diversão temáticos, transporte coletivo de passageiros, Sociedades Anônimas de Futebol (SAFs), e agências de viagens e de turismo.
Os regimes diferenciados e os regimes específicos do IBS e da CBS são tratados nos Títulos IV e V do Projeto de Lei Complementar nº 68/24 (PLP 68/24), respectivamente. Cada título contém capítulos com disposições gerais e específicas sobre esses novos regimes de tributação (alíquotas, base de cálculo, forma de apuração, definição de atividades e setores contemplados etc.). A título de exemplo, no que tange aos regimes específicos, o PLP 68/24 prevê que o IBS e a CBS incidirão uma única vez sobre as operações realizadas com combustíveis como gasolina, óleo diesel e gás natural processado, ainda que iniciadas no exterior.
Gyedre Carneiro de Oliveira, Pedro Miranda Roquim e Bárbara Borges: Os regimes tributários diferenciados e específicos estão previstos nos artigos 115 ao 304 do Projeto de Lei Complementar (PLP) 68/24 e são regras especiais para determinados serviços, produtos e setores da economia, que são tratados como exceções à incidência da CBS e do IBS, por função social dos entes federativos ou até mesmo adaptação de determinado setor no contexto tributário. Os regimes tributários diferenciados preveem uma redução de carga tributária (isenção ou redução de alíquota de 30%, 60% e 100%) para determinados setores, bens e serviços ou concessão de créditos presumidos.
Por sua vez, os regimes tributários específicos determinam que certos produtos e serviços podem ser submetidos a um tratamento diferente no IBS e na CBS, podendo ser contemplados, por exemplo, com alterações na base de cálculo e nas alíquotas, além de poder incidir sobre a receita/faturamento.
De acordo com o PLP 68/24, teriam regimes diferenciados o setor de combustíveis e lubrificantes, serviços financeiros, planos de saúde, apostas, bens imóveis, sociedade cooperativas, serviços de hotelaria, bares e restaurantes, agências de viagens e de turismo, aviação regional, atividades esportivas desenvolvida por Sociedade Anônima de Futebol (SAF) e transporte coletivo de passageiros rodoviário intermunicipal e interestadual, ferroviário, hidroviário e aéreo regional.
Importante, apenas, ressaltar que haverá uma avaliação a cada cinco anos de todos os regimes diferenciais e específicos para verificação de sua eficiência, eficácia e efetividade, com o cumprimento da função social, ambiental e de desenvolvimento econômico visados pela reforma tributária, especificamente no caso, pelo PLP 68/24.
– Quais itens terão isenção de 100% da CBS e do IBS e quais farão jus a descontos de 60% e de 30%?
Anna Flávia Moreira: O PLP 68/24 dividiu os regimes diferenciados em alíquotas reduzidas em 30%, em 60% ou em 100%. A redução em 30% das alíquotas do IBS e da CBS se aplica à prestação de serviços pelas profissões intelectuais de natureza científica, literária ou artística, submetidas à fiscalização por conselho profissional, previstas no artigo 116 do PLP – dentre elas: advogados, administradores, arquitetos, economistas, engenheiros. Os serviços podem ser prestados por pessoa física, desde que vinculados à habilitação do profissional, ou por pessoa jurídica que cumpra os requisitos previstos no parágrafo único do mesmo artigo.
Já a redução em 60% das alíquotas do IBS e da CBS contempla operações com serviços de educação; serviços de saúde; dispositivos médicos; dispositivos de acessibilidade próprios para pessoas com deficiência; medicamentos; produtos de cuidados básicos à saúde menstrual; alimentos destinados ao consumo humano; produtos de higiene pessoal e limpeza consumidos por famílias de baixa renda; produtos agropecuários, aquícolas, pesqueiros, florestais e extrativistas vegetais in natura; insumos agropecuários e aquícolas; produções nacionais artísticas, culturais, de eventos, jornalísticas e audiovisuais; comunicação institucional; atividades desportivas; e bens e serviços relacionados à soberania e segurança nacional, segurança da informação e segurança cibernética.
Por fim, a redução a zero das alíquotas do IBS e da CBS envolve operações com dispositivos médicos; dispositivos de acessibilidade para pessoas com deficiência; medicamentos; produtos de cuidados básicos à saúde menstrual; produtos hortícolas, frutas e ovos; automóveis de passageiros adquiridos por pessoas com deficiência ou com transtorno do espectro autista; automóveis de passageiros adquiridos por taxistas; serviços prestados por instituição científica, tecnológica e de inovação sem fins lucrativos.
Gyedre Carneiro de Oliveira, Pedro Miranda Roquim e Bárbara Borges: Os itens submetidos à alíquota zero (isenção de 100%) do IBS e da CBS são os seguintes (elencados no artigo 132 do PLP 68/24): destinados à cesta básica (ovos, produtos hortícolas e frutas); medicamentos; dispositivos médicos; produtos de cuidados básicos à saúde menstrual; dispositivos de acessibilidade para pessoas com deficiência (automóveis para PCD com benefício até de R$ 70.000,00, envolvendo veículos de até R$ 120.000,00 e manutenção do benefício de IPI até R$ 200.000,00); automóveis adquiridos por pessoas com deficiência ou com transtorno do espectro autista; automóveis adquiridos por motorista profissional (táxi).
Por sua vez, os itens com desconto de 60% (artigo 117 do PL 68/2024) são: serviços de educação; serviços de saúde; dispositivos médicos; dispositivos de acessibilidade própria para pessoas com deficiência; medicamentos; produtos de cuidados básicos à saúde menstrual; alimentos destinados ao consumo humano; produtos de higiene pessoal e limpeza majoritariamente consumidos por famílias de baixa renda; produtos agropecuários, aquícolas, pesqueiros, florestais e extrativistas vegetais in natura; insumos agropecuários e aquícolas; produções nacionais artísticas, culturais, de eventos, jornalísticos e audiovisuais; comunicação institucional; atividades desportivas; e bens e serviços relacionados a soberania e segurança nacional, segurança da informação e segurança cibernética.
Já os itens com desconto de 30% são relativos aos serviços de profissionais intelectuais de natureza científica, literária ou artística submetidas à fiscalização por conselho profissional, tais como: administradores; advogados; arquitetos e urbanistas; assistentes sociais; bibliotecários; biólogos; contabilistas; economistas; economistas domésticos; profissionais de educação física; engenheiros e agrônomos; estatísticos; médicos veterinários e zootecnistas; museólogos; químicos; profissionais de relações públicas; técnicos industriais; e técnicos industriais.
– Considerando alimentos que fazem parte da Cesta Básica Nacional e medicamentos, e se comparados com o cenário atual, a regulamentação da Reforma Tributária promoverá a desoneração?
Anna Flávia Moreira: A Reforma Tributária determina que lei complementar liste os produtos destinados à alimentação humana que terão suas alíquotas de IBS e CBS zeradas. Nesse sentido, o Anexo I do PLP 68/24 trouxe a lista desses produtos, especificados por NCM/SH, definindo a composição da “Cesta Básica Nacional de Alimentos”. Se aprovada nesses termos, a regulamentação da Reforma Tributária promoverá a desoneração dos produtos definidos na lei complementar e que, atualmente, não são beneficiados pela redução de alíquota a zero.
Segundo o governo federal, a carga tributária média dos alimentos favorecidos cairá de 11,6% para 4,8%; enquanto, para aqueles que têm direito ao cashback, cairá para 3,9%. Não obstante, economistas do Banco Mundial alertam que, quanto maior a lista dos produtos beneficiados por essa desoneração, maior será a carga tributária média dos demais alimentos que não compõem a Cesta Básica Nacional.
Simulações do Banco Mundial demonstram que os produtos incluídos no PLP 68/24 já elevaram a alíquota sobre outros produtos de 22,1% para 26,5%, e, com mais desonerações, a alíquota pode chegar a 28%.
Gyedre Carneiro de Oliveira, Pedro Miranda Roquim e Bárbara Borges: Sim. A Cesta Básica Nacional de Alimentos tem com prioridades os alimentos in natura ou minimamente processados e aqueles consumidos majoritariamente pelas famílias de baixa renda, procurando distribuir o peso da carga tributária e introduzir práticas de alimentação saudável.
No que tange à Cesta Básica Nacional, o PLP 68/24 prevê alíquota zero de IBS e CBS (isenção de 100%) para 15 produtos destinados à alimentação, tais como arroz, leite, feijão e café. Este mesmo PL prevê redução de alíquota de 60% (cesta estendida) para 13 alimentos da cesta, como carnes, queijos, farinhas e óleos.
De acordo com o Ministério da Fazenda, a carga tributária média dos alimentos favorecidos pelas cestas básica e estendida deve cair de 11,6% para 4,8%, sendo que, se considerado o cashback a ser disponibilizado para as famílias de baixa renda, a carga tributária cairá para 3,9%, ainda segundo o Ministério da Fazenda,
No tocante aos medicamentos, a Reforma Tributária prevê a redução do IBS e da CBS em 60% para 850 tipos de medicamentos, além de estabelecer alíquota zero de IBS e CBS para 383 medicamentos e para compras públicas de medicamentos. Com relação a estes medicamentos, o Ministério da Fazenda afirma que os benefícios previstos na Reforma Tributária são mais abrangentes do que os benefícios de Pis/Cofins e ICMS existentes atualmente.
– Em sua avaliação, durante a tramitação do PL haverá mudança relevante nos itens que, pelo PLP 68/24, ficam beneficiados pelos regimes diferenciados ou específicos? Há riscos de que essas alterações desfigurem a maior justiça tributária idealizada pela reforma?
Anna Flávia Moreira: Diante da possibilidade de redução da carga tributária de seus bens e serviços, é esperado que empresas de setores econômicos não beneficiados pelo PLP 68/24 se movimentem durante o processo de regulamentação da Reforma Tributária, a fim de afastar ou diminuir a tributação das suas atividades. Consequentemente, é possível que ainda ocorram mudanças nos itens a serem beneficiados pelos regimes diferenciados e específicos.
Do ponto de vista da isonomia entre contribuintes, a justiça tributária idealizada pela Reforma Tributária seria promovida por meio da extinção de benefícios fiscais e regimes especiais. Não obstante, na prática, o PLP 68/24 está propondo a instituição de diferentes regimes de tributação para contribuintes e bens/serviços individualizados, na contramão da justiça tributária inicialmente idealizada, enfraquecendo a ideia de afastar tratamentos diferenciados entre contribuintes em situação equivalente.
Gyedre Carneiro de Oliveira, Pedro Miranda Roquim e Bárbara Borges: Acreditamos que a proposta está bem desenhada, mas, apesar de parcialmente negociada, representa a posição do governo/Ministério da Fazenda, de modo que as mudanças devem acontecer, principalmente no que diz respeito às regras de exceção.
O problema nessa discussão é o fato de que a criação de exceções à tributação pode implicar na majoração da alíquota de referência o mesmo desfigurar a natureza do IBS e CBS, fazendo com que tenhamos um modelo de Imposto sobre Valor Agregado (IVA) totalmente diferente do resto dos países.