A participação de investidores brasileiros em IPOs realizados no exterior
No final de 2019, Comissão de Valores Mobiliários (CVM) emitiu orientação sobre a participação de investidores brasileiros em ofertas públicas de valores mobiliários realizadas por empresas brasileiras no exterior. A orientação se deu em resposta a uma consulta formulada por gestores de fundos de investimentos, motivada pelo recente fenômeno da “exportação” de IPOs.
O tema objeto dessa nova orientação da CVM tem despertado grande interesse nos participantes do mercado — em especial gestores e instituições integrantes do sistema de distribuição de valores mobiliários – em razão da crescente demanda dos investidores brasileiros por recursos no exterior. O acesso aos mercados estrangeiros tem gerado, por vezes, incertezas acerca da incidência da legislação brasileira que regula o funcionamento do mercado de valores mobiliários.
A oferta de valores mobiliários estrangeiros a investidores no Brasil já foi objeto de processo sancionador instaurado pela CVM e ensejou a edição dos Pareceres de Orientação CVM 32 e 33. Eles tratam, respectivamente, do uso da internet em ofertas de valores mobiliários e intermediação de operações, e da intermediação de operações e oferta de valores mobiliários emitidos e admitidos à negociação em outras jurisdições.
O assunto ressurgiu na consulta apresentada por gestores, de acordo com a qual os intermediários estrangeiros receavam que a participação dos fundos de investimento em IPOs de empresas brasileiras no exterior pudesse caracterizar uma oferta pública de valores mobiliários no Brasil. Se assim fosse, a operação estaria se realizando em território nacional sem o prévio registro junto à CVM, como exige o art. 19 da Lei nº 6.386/76, e sem observar as normas editadas pela CVM que disciplinam a matéria, em especial a Instrução 400/02.
Os consulentes expuseram seu entendimento de que a participação dos fundos de investimento nas ofertas em questão não deveria caracterizar uma oferta pública no Brasil, desde que observadas as seguintes condições:
- não haverá esforços de venda direcionados a investidores constituídos ou domiciliados no Brasil por parte do ofertante, do emissor ou dos intermediários estrangeiros participantes da oferta. A iniciativa de participar da oferta seria do gestor do fundo de investimento, que se dirigiria espontaneamente ao intermediário estrangeiro, ou sua afiliada brasileira, manifestando seu interesse na oferta;
- a intermediação da oferta será realizada por intermediários constituídos no exterior;
- as informações prestadas por quaisquer meios (correspondência eletrônica, videoconferência, reuniões presenciais etc.) a um fundo de investimento interessado – seja pelo intermediário estrangeiro, seja pelo ofertante ou o emissor dos valores mobiliários — devem ser dirigidas individualmente ao seu gestor;
- caso decida participar da oferta, o fundo de investimento dirigirá uma ordem para aquisição de ações diretamente ao intermediário estrangeiro e a operação será liquidada no exterior.
Em resposta à questão formulada na consulta, a CVM esclareceu que somente são caracterizadas como ofertas sujeitas a registro na Comissão aquelas distribuídas publicamente, em território brasileiro, a residentes e domiciliados no Brasil e somente podendo ser efetuadas com intermediação das instituições integrantes do sistema de distribuição de valores mobiliários, ressalvadas as exceções previstas na Instrução CVM 400/02.
Assim sendo, uma oferta pública de ações com as características descritas na consulta não está sujeita a registro no Brasil, uma vez que:
- não haverá esforços de venda direcionados a investidores constituídos ou domiciliados no País referentes à distribuição pública registrada, negociada e ofertada no exterior. Tampouco a oferta contará com a intermediação de instituições integrantes do sistema de distribuição de valores mobiliários brasileiro — condições que serão, inclusive, declaradas pelos investidores por escrito;
- as informações relativas à oferta serão apresentadas pelo intermediário estrangeiro aos investidores mediante solicitação, individualmente, sendo que, havendo interesse, a ordem para aquisição das ações objeto da oferta será enviada diretamente ao intermediário estrangeiro, que atenderá ao pedido e liquidará a operação no exterior.
A manifestação da CVM deixa claro que um investidor residente no Brasil é livre para realizar aplicações em valores mobiliários e outros ativos financeiros no exterior, desde que o faça de forma espontânea. O que não se admite é a oferta de valores mobiliários negociados no exterior a esse investidor, pois tal oferta deve se processar em conformidade com a Lei nº 6.385/1976 e as normas editadas pela Comissão para regulamentar suas disposições.
Com efeito, as normas que regulam o mercado de capitais brasileiro submetem-se, tal como todas as demais normas que integram o ordenamento jurídico nacional, aos limites territoriais dentro dos quais o Estado brasileiro exerce sua soberania. Como adverte Celso D. de Albuquerque Mello, o território tem a função de “delimitar a competência estatal que se exerce em relação aos indivíduos”. Apenas em situações excepcionais a lei nacional pode ultrapassar esses limites geográficos para reger situações jurídicas que sejam de relevante interesse nacional — a exemplo do art. 7º do Código Penal, que prevê as hipóteses em que a lei penal brasileira tem aplicação a delitos praticados no estrangeiro.
A recente resposta à consulta em análise demonstra que a orientação dada pela CVM quando da edição do Parecer nº 33, de 30 de novembro de 2005, permanece atual. Ela deixa claro, uma vez mais, os limites a que se sujeitam as normas que regem o mercado de capitais nacional, ao reafirmar que somente estão sujeitas a registro na Comissão as ofertas públicas de valores mobiliários distribuídas publicamente, em território brasileiro, a residentes e domiciliados no Brasil.
O pronunciamento da entidade reguladora também coloca em evidência o fato de que as ofertas públicas de valores mobiliários no Brasil somente podem ser efetuadas com intermediação das instituições integrantes do sistema de distribuição de valores mobiliários. Como se sabe, somente instituições autorizadas pelo Banco Central e pela CVM podem exercer essa atividade, o que torna ilícita a oferta de serviços de intermediação e a prospecção de clientes no País por intermediários estrangeiros, como já destacava o Parecer de Orientação nº 33.
Além de não estarem autorizadas a prestar serviços de intermediação em território nacional, os intermediários estrangeiros não podem ofertar aos investidores residentes no Brasil valores mobiliários que não tenham sido emitidos em conformidade com a legislação regente do mercado de valores mobiliários nacional. Nem mesmo os intermediários autorizados a atuar no País podem oferecer ativos estrangeiros aos seus clientes, sob pena de se criar um mercado de balcão de valores mobiliários à margem da Lei nº 6.385/76 e do poder regulamentar da CVM.
Atualmente, os investidores residentes em território brasileiro podem adquirir exposição a ativos emitidos no exterior adquirindo cotas de fundos de investimento que tenham esses ativos em suas carteiras. Além dessa modalidade de investimento, a CVM admite a oferta no Brasil de valores mobiliários emitidos fora do País de forma excepcional.
A forma mais comum para oferta de valores mobiliários estrangeiros no Brasil são os programas de brazilian depositary receipts, cuja regulação se encontra em processo de revisão – também com a finalidade de lidar com o fenômeno da “exportação de IPOs”, como se observa no edital de audiência pública SDM nº 08/19. Outro caminho previsto nas normas da CVM é a negociação através de telas de acesso instaladas por bolsas estrangeiras em instituições integrantes do sistema de distribuição de valores mobiliários, nos termos da Instrução 461/07. Essa modalidade de acesso é utilizado pela Chicago Mercantile Exchange para o mercado de derivativos, mas ainda não teve utilização por uma bola estrangeira para a negociação com equities.
Conclui-se, portanto, que a manifestação da CVM tem a virtude de delimitar, com precisão, o âmbito de aplicação das normas que regem o mercado de valores mobiliários nacional e a competência deste órgão sobre a oferta e a negociação com valores mobiliários estrangeiros por investidores residentes no Brasil, reavivando o entendimento já explicitado no Parecer de Orientação nº 33. Porém, em que pese a clareza com que o órgão regulador abordou a questão objeto da consulta, a diversidade de situações que surgem no relacionamento entre investidores brasileiros e intermediários locais e estrangeiros sempre exigirão cuidado para que não haja indevida transgressão dos limites impostos pelo ordenamento jurídico nacional.