O impacto da pandemia do covid-19 nas relações contratuais
A propagação do covid-19, recentemente declarada pandemia pela Organização Mundial da Saúde (OMS), tem dominado os noticiários desde o seu início na China. Nos últimos dias, a rápida proliferação de casos no Brasil resultou na tomada de medidas extremas e inéditas, como a suspensão do aulas em escolas públicas e particulares, a restrição do funcionamento de estabelecimentos comerciais e industriais e a adoção do regime de teletrabalho por empresas que comportam essa modalidade laboral.
Por óbvio, tais ações causarão grandes impactos nos indicadores da economia nacional — que, mesmo antes da pandemia, demonstravam avanços tímidos. Analistas já estimam uma redução considerável na projeção de crescimento do PIB do País no exercício de 2020 e o mercado acionário tem vivido dias de extrema volatilidade, amargando perdas que já ultrapassam as centenas de bilhões de reais.
Sob o ponto de vista jurídico, muito tem se falado acerca da configuração da pandemia de covid-19 como um evento de força maior, considerando o seu caráter extraordinário e as graves consequências passíveis de serem geradas nas relações entre particulares.
A força maior, assim como o caso fortuito, é tratada no Código Civil Brasileiro como situação excludente de responsabilidade. Aquele que deixar de cumprir determinada obrigação em decorrência de um acontecimento de força maior, em regra, não poderá ser penalizado, salvo se tiver assumido a responsabilidade expressa por tal fato, o que não é usual.
Dada a sua imprevisibilidade e a inevitabilidade de seus efeitos — tendo vários países, inclusive o Brasil, declarado situação de emergência e calamidade pública — a tendência é que a propagação do covid-19 seja caracterizada como um evento de força maior. Nesse contexto, é esperado que empresas descumpram compromissos contratualmente assumidos, o que gerará um efeito cascata no âmbito de cadeias produtivas.
A título de exemplo, foi amplamente divulgado que o governo chinês, durante o auge da propagação do covid-19, emitiu certificados de força maior a diversas empresas daquele país como uma forma de protegê-las das penalidades do descumprimento de obrigações e de minimizar os impactos ao setor econômico.
Diante dessa situação sem precedentes, e ainda que a legislação nacional caracterize a força maior como excludente de responsabilidade, é recomendável a adoção de determinadas medidas para atenuar os efeitos de um possível ou até mesmo iminente descumprimento contratual. Isso elevaria o nível de transparência na relação entre as partes e visando a manutenção de contratos, guardadas as peculiaridades de cada caso.
Sugere-se o envio de comunicados a clientes, fornecedores, colaboradores e prestadores de serviços informando-os dos desafios que vêm sendo enfrentados e da possibilidade de eventuais impactos causados pelas restrições implementadas em resposta à pandemia do covid-19.
Não são incomuns previsões expressas no sentido de que pactos devam ser reajustados em situações dessa natureza ou até mesmo rescindidos caso as implicações de tais eventos perdurem para além de determinado prazo, ou da necessidade de notificação informando os impactos causados ou que possam ser causados em virtude do evento para que sejam configurados força maior. Por conta disso, é prudente que seja realizado um levantamento dos contratos vigentes e de suas disposições quanto às consequências de situações de força maior
Em situações de descumprimento consumado, é esperado que as partes, privilegiando a boa-fé e a função social dos contratos, busquem ajustar as condições da avença e preservar a relação contratual. No entanto, caso tal solução não seja possível ou viável, a questão deverá necessariamente ser submetida à apreciação do poder judiciário ou de um órgão arbitral, conforme o disposto no contrato, hipótese em que as medidas tomadas por cada parte no contexto do evento imprevisível poderão servir como elementos probatórios para o convencimento do julgador.
Nesse contexto, operações de M&A ou, ainda, quaisquer contratos que regulem operações e negócios com condições suspensivas para sua efetivação devem ser avaliados. Assim, as partes conseguem estar preparadas e avaliar a possibilidade ou o risco de postergação ou não fechamento da operação em virtude da pandemia do covid-19, geralmente tratada como “efeito material adverso” em contratos de natureza comercial.
Para eventuais contratos celebrados durante ou após a pandemia de covid-19, fica ainda mais evidente a necessidade de se conferir extrema atenção a determinados aspectos que podem ser essenciais em situações análogas, como o tratamento específico a ser adotado em situações de força maior, a regulação do que seria “efeito material adverso” que pode dar ensejo a eventual rescisão justificada e não fechamento de uma operação ou negócio, a eleição do foro para a resolução de conflitos e, no caso de contratos internacionais, a legislação de regência e seus impactos e interpretação.
De modo geral, não é um exagero afirmar que a situação que vivemos atualmente moldará o futuro das relações contratuais, assim como ocorrido em outros episódios de larga escala do passado, como a crise de 1929 e a 2ª Guerra Mundial. Diante de tal cenário, a busca por orientação legal mostra-se ainda mais relevante e essencial para que as empresas estejam aptas a tomarem decisões céleres e conscientes neste ambiente de incertezas.
*Colaborou Rafael Zimmer, sócio do escritório Coimbra & Chaves Advogados.